sábado, 17 de março de 2012

VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

Gerivaldo Alves Neiva

- Você sabe com quem está falando?
Coitado do interlocutor: será um delegado, um juiz, um promotor? Valha-me Deus!
Esta expressão demonstra, sobretudo, o autoritarismo e a arrogância dos agentes públicos deste nosso país. Muitas vezes, é usada até mesmo por filho, esposa ou parente em grau distante de “autoridade” qualquer. É típica do “país dos bacharéis.”
Eu nunca usei esta expressão, mas já fui tentado algumas vezes.
Certa feita, estava na estação rodoviária de Salvador esperando minha sogra, pessoa idosa, chegar do interior do estado com caixas de preciosidades: rapadura, requeijão, carne do sol e outras iguarias mais. Na época, havia um torniquete que impedia o acesso à plataforma de desembarque, mas havia um portão lateral destinado à saída dos carregadores credenciados que trabalhavam na estação rodoviária.
Vendo minha sogra desembarcar, pedi educadamente ao funcionário que me permitisse entrar por aquele portão: “companheiro, aquela senhora é minha sogra e está precisando de ajuda com aquelas caixas...” Ele nem me deixou concluir: “meu jovem, este portão é só para desembarque...”
Insisti com minha calma costumeira e expliquei que não lhe causaria prejuízo algum, pois entraria apenas para trazer duas caixas até a parte externa e também não causaria qualquer problema para sua autoridade, mas não obtive êxito com meus argumentos.
Nisto, vejo que se aproxima de mim um Sargento da Polícia Militar, devidamente fardado, que havia comandado o destacamento de uma Comarca que eu havia trabalhado. Ao me reconhecer, o Sargento colocou sua mala no chão me saudou com a “continência” e perguntou se estava precisando de alguma coisa.
Tive muita vontade de rir da cara de surpresa do funcionário da estação rodoviária, mas me contive. Com mais humildade ainda, expliquei ao Sargento o ocorrido e este se virou com autoridade militar para o funcionário e disse que ele estava desrespeitando um Juiz de Direito e que fosse ele mesmo apanhar as caixas. Claro que não permiti e eu mesmo fiz questão de ajudar minha pobre sogra que já estava desesperada com a demora.
Na volta, o funcionário me pediu mil desculpas e observou, quase me repreendendo, que eu deveria ter dito logo que era Juiz de Direito e que tudo teria seria resolvido sem problemas. Aceitei suas desculpas, agradeci ao Sargento e fui embora. Deu tempo ainda para ouvir uma pessoa que presenciou a cena comentar: “ah! se eu fosse Juiz de Direito esse guardinha de rodoviária ia ver uma coisa!”
Deixa prá lá... Com diz o ditado: “Deus não dá asa a cobra!”
Outra vez, ainda em Salvador, imprudentemente, cometi uma infração de trânsito. Era uma famosa “roubada”, fazendo um “cotovelo” não permitido, para encurtar caminho e evitar duas demoradas sinaleiras. Nunca tinha feito aquilo antes, mas admirava quem fazia. O problema é que havia um módulo policial na praça logo em seguida à saída do “cotovelo”, mas naquele dia olhei com cuidado e não vi o policial militar de plantão.
Criei coragem e fiz o “cotovelo” com maestria e rapidez. Com mais rapidez ainda, o policial militar que estava do outro lado da rua apitou com força, apontando para meu carro e me fazendo estacionar. E agora? Fazer o quê? Flagrante...
O policial militar aproximou-se bem devagar, com aquela “marra” característica e sotaque “baianês” acentuado: “boa tarde, cidadão, documento do veículo, habilitação e documento de identidade!”
Vi que se tratava de um soldado e não tinha dúvida de que estava errado e que deveria ser punido. Agi com absoluta calma. Cumprimentei o soldado e perguntei se ele já havia multado um Juiz de Direito em sua carreira de Policial. Ele me olhou com surpresa e me perguntou a razão. Respondi então que seria aquela a sua primeira vez e lhe apresentei minha carteira de magistrado.
Não sei descrever a expressão inicial dele: surpresa, raiva, indignação, dúvida... Olhava a carteira e me olhava como se conferindo a fotografia da carteira com meu rosto. Depois de alguns segundos ele me devolveu a carteira e me disse em tom de reprovação: “Até o senhor, doutor? Tudo bem, não vou lhe multar, mas o senhor sabe que cometeu uma infração e que está errado. Pode ir embora, mas não faça mais isso, doutor.”
Agradeci sem graça e me despedi do soldado em péssimo estado moral. Melhor seria que não tivesse me apresentado como Juiz e ser multado normalmente. O comentário do policial me valeu muito mais do que a multa por infração no trânsito. Aquele “até o senhor, doutor?” ficou repercutindo em minha cabeça por vários dias.
Claro que já vivi outras situações, mas depois desses dois episódios entendi, primeiramente, que não tenho uma estrela na testa me identificando como Juiz de Direito e que o funcionário da estação rodoviária estava apenas cumprindo o que lhe foi determinado e protegendo seu emprego; em segundo lugar, que terminei constrangendo desnecessariamente um policial militar no exercício de sua função e saindo mais constrangido ainda ao me utilizar da condição de Juiz de Direito para me livrar de uma merecida multa de trânsito.
Por fim, passei a agradecer todos os dias ao constituinte que elaborou o artigo 5º, da Constituição Federal: “todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza.”
Conceição do Coité, 16 de novembro de 2008

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