segunda-feira, 5 de março de 2012

O boi do Êxodo, a “actio libera in causa” e a embriaguez ao volante

Aldo Pereira, em “Crime e castigo”, artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 14 de abril de 2011 (A3), recorda uma sentença da Bíblia: deve ser inocentado o dono do boi que, com uma chifrada, mate uma pessoa. Se, entretanto, o boi era reincidente em chifrar humanos e o proprietário, não obstante advertido, “não o mantinha fechado”, vindo o animal a matar alguém, ele (o dono) será condenado (Êxodo, 21: 28 e 29).

Êxodo, derivado do grego exodos, significa saída, tratando da fuga que empreenderam os hebreus ao escapar da perseguição sofrida no Egito. É claro que nele não encontramos a expressão “actio libera in causa” (ação livre em sua causa), remontando aos práticos italianos. Consistindo a imputabilidade na capacidade de entender e de querer, ocorre a teoria da “actio” quando o sujeito coloca-se em estado de inimputabilidade e vem a praticar uma infração penal. Exemplo: o segurança de uma indústria embriaga-se para que, no momento da subtração de bens por uma quadrilha, dormindo, ela não encontre dificuldades. Responde criminalmente pelo fato. Referindo-se à liberdade, ele era livre no momento em que resolveu embriagar-se (liberdade originária); não o era, contudo, no momento da prática do furto (liberdade atual). Como a imputabilidade deve ocorrer ao tempo do crime, suponha-se, no caso do boi da Bíblia, que o animal já tivesse matado várias pessoas e seu proprietário, em vez de prendê-lo, estivesse numa bebedeira, encontrando-se em estado de inimputabilidade quando o raivoso ruminante atropelasse mais uma vítima fatal. Responderia por crime intencional ou culposo? A Bíblia não responde.

De observar-se que as “actiones liberae in causa” não se dão somente quando o comportamento inicial é doloso, isto é, predestinado ao crime. É claro que se o autor, voluntariamente, embriaga-se para realizar uma conduta comissiva ou omissiva intencional, não resta dúvida de que responde por delito doloso. Note-se, na frase, que a expressão “voluntariamente” diz respeito à embriaguez; a “intencional”, ao crime. Mas pode ser também culposa a conduta inicial. Exemplo: o sujeito, culposamente, deixa de cumprir sua obrigação de diligência, havendo um resultado danoso. Nesse caso, há delito doloso ou culposo?

É nessa hipótese que nos reportamos ao caso do boi do Êxodo. Se o animal já tinha fugido várias vezes e ferido e matado diversas pessoas, a ausência de cuidado do consciente e advertido proprietário ou encarregado de observar o dever de diligência conduz à responsabilidade penal dolosa. Que dizer do motorista que, em estado de embriaguez costumeira, já surpreendido várias vezes cometendo manobras perigosas no trânsito com seu veículo, causando diversos acidentes fatais, dirige novamente bêbado e vem a matar uma pessoa? Como já ensinava Farinaccio, “se o sujeito sabe que costuma cometer delitos quando embriagado e não se abstém, vindo a cometê-los, deve sofrer pena” (Teoria…, p. 187). Pena de homicídio culposo? Creio que não. Se assim fosse, nem valia a pena Farinaccio ter repetido uma solução óbvia.

De acordo com a doutrina, para que se aplique a teoria da “actio libera in causa” é necessário que, no momento livre, o sujeito aja com dolo ou culpa, ainda que, no instante do crime, encontre-se em situação de incapacidade de entender e de querer. Há casos em que o ébrio, quando apanhado dirigindo veículo motorizado, está de tal modo alcoolizado que nem consegue andar, quanto mais pensar corretamente. Nessas hipóteses, precisamos verificar qual era sua situação mental ao tempo do ato originário. Dessa forma, só há crime de homicídio com dolo eventual quando assim agiu o motorista antes do ato executório do fato. Quer dizer: ainda que ele se encontre, no instante em que matou a vítima com seu automóvel, em estado de incapacidade psíquica, é necessário que tenha agido com dolo eventual ao tempo da direção homicida.
Não admitimos a responsabilidade penal objetiva, na qual basta o nexo de causalidade material. Quando afirmamos que o dolo eventual ocorre na situação de indiferença do condutor para com o bem jurídico, desprezo com a vida alheia etc., não estamos dizendo ser preciso que ele esteja pensando no momento da ocorrência: “para mim tanto faz, pouco importa, dane-se etc”. Nunca encontramos réu em tal situação em 26 anos de Ministério Público e décadas de janeiros em pesquisas de jurisprudência. Na televisão, já vimos ocorrências em que o motorista embriagado mal pronuncia palavras, não se sustenta ereto, tal é sua confusão mental, sem capacidade de autodeterminação. Antes de embriagar-se, ou ao tempo da embriaguez, e antes do evento fatal, deve existir dolo ou culpa não só em relação à própria ebriez; é indispensável que se conecte, um ou outro, ao delito consequente. Se o motorista, quando seu veículo atropela e mata a vítima, já estava agindo com dolo eventual, nem há necessidade da teoria da “actio libera in causa” para que responda por crime doloso.

Na “actio”, o elemento psicológico do agente deve ser apreciado em face de seu comportamento objetivo originário ou contemporâneo à conduta. Nessa última hipótese, na lição de Nélson Hungria, “no caso de embriaguez não preordenada, mas voluntária ou culposa, responderá o agente por crime doloso ou culposo, segundo o indicarem as circunstâncias, ou seja, segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade” (Comentários…).
Diante da embriaguez dolosa ou culposa, presente a circunstância do consciente risco (teoria da imputação objetiva), entendemos que o motorista não deve responder por homicídio culposo no trânsito por ter praticado um crime “sem intenção”, como se costuma dizer. Trata-se de homicídio doloso com dolo eventual (Código Penal, art. 18, I, segunda parte). Ele assumiu o risco de causar o resultado. Como dizia Nélson Hungria, que aceitava a aplicação da teoria da “actio” à hipótese da responsabilidade dolosa do ébrio, “mesmo quando não haja preordenação, não fica excluída, nos crimes comissivos, a responsabilidade a título de dolo, desde que, ao colocar-se voluntariamente em estado de conturbação psíquica, o indivíduo soube que estava criando o risco, que aceitou, de ocasionar resultados antijurídicos” (Comentários…).

A teoria da “actio libera in causa” não prescinde de dolo ou culpa, consistindo sua característica na circunstância de que pode inexistir a potencial consciência da ilicitude ao tempo do ato executório do crime, presente em momento anterior (conduta originária).

Por Damásio de Jesus

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