“Quem quer que conheça um pouco de história sabe que sempre existiram preconceitos nefastos e que mesmo quando alguns deles chegam a ser superados, outros tantos surgem quase que imediatamente. Apenas posso dizer que os preconceitos nascem na cabeça dos homens. Por isso, é preciso combatê-los na cabeça dos homens, isto é, com o desenvolvimento das consciências e, portanto, com a educação, mediante a luta incessante contra toda forma de sectarismo. Existem homens que se matam por uma partida de futebol. Onde nasce esta paixão se não na cabeça deles? Não é uma panaceia, mas creio que a democracia pode servir também para isto: a democracia, vale dizer, uma sociedade em que as opiniões são livres e, portanto, são forçadas a se chocar e, ao se chocarem, acabam por se depurar. […] Para se libertarem dos preconceitos, os homens precisam antes de tudo viver numa sociedade livre.”1
A escolha de Bobbio para iniciar essa reflexão tem um significado. Esse “mestre do pensamento”, no dizer do Le Monde, sempre se definiu como um observador político, um homem em defesa da razão. Como tal, aponta a educação como única via capaz de combater os preconceitos que se enraízam e se sucedem nas comunidades humanas, constituindo-se grave problema social; e acrescenta: isto só será possível numa democracia. Bom começo de artigo diminuto para quem vive num País, como o Brasil, onde o tema do preconceito está na moda. Até minhas netas de 8 anos já usam essa expressão e me perguntaram:
– Vô, a gente só é diferente na cor?
– Não, minhas netas, os homens não se diferenciam em nada. Não somos imagem e semelhança de Deus? Se fôssemos diferentes haveria vários deuses. Só tenho um.
– Vô, mas por que então tem gente branca e gente preta?
– Minhas netas, na região onde eu morava também plantam e colhem pimentões verdes, amarelos e vermelhos. Para a Copa do Mundo, inventaram até um pimentão de duas cores: verde-amarelo. Todos eles, porém, pouco importando a cor, são simplesmente pimentões. Para Deus, a cor é um detalhe sem importância.
A primeira classificação dos homens em raças2 foi a Nouvelle division de La terre par les différents espèces ou races qui l’habitent (”Nova divisão da terra pelas diferentes espécies ou raças que a habitam”), do autor François Bernier, publicada em 1684. Não é do meu tempo, esclarecendo que tive de estudar essa obra quando procurei saber se a expressão “raça ruim” é pejorativa a ponto de justificar a tipicidade do fato à luz da definição do crime de injúria.
Somente no século XIX os naturalistas (e não Deus) definiriam de maneira mais clara o que se poderia compreender sobre raça humana e o fizeram a partir da cor da pele, do tipo facial (principalmente o formato dos lábios, olhos e nariz), perfil craniano e textura e cor dos cabelos, mas considerava-se também que essas características refletiam diferenças no conceito moral e na inteligência, pois uma caixa cranial maior e/ou mais alta representava um cérebro maior, mais alto e, por consequência, maior quantidade de células cerebrais. É o que diziam.
Numa perspectiva histórica, observamos que a primeira divisão em categorias se deu num momento em que as novas descobertas de povos, culturas e regiões começaram a ser objeto não mais somente de exploração, mas de estudos. Os contatos havidos em todo o século XVI obrigavam uma acurada busca de conhecimento daquela nova realidade que se desenhava. E, é claro, todas as análises partiram de valores e padrões europeus que se transformaram nos paradigmas sobre os quais os povos africanos, ameríndios e asiáticos são hoje categorizados.
O racismo, analisando o Brasil, tem sido o preconceito de mais difícil erradicação. Justamente por ser negado, ele se mantém. Oriundo das primeiras relações entre brancos e negros ainda no período colonial, sedimentou-se a partir de um regime de servidão no qual a cor tornou-se o sinal visível da dependência. De tal forma entranhou-se no tecido social que, apesar da abolição da escravatura e das sucessivas legislações que buscam cada vez mais uma maior igualdade de direitos e oportunidades no campo do trabalho, ainda assim o negro sente-se diminuído e as próprias leis que vêm para garantir-lhe direitos evidenciam a ausência deles.
Há toda uma parafernália no sentido de cantar em prosa e verso a inclusão do diferente. Diferente de quem? Diferente de quê? Diferente em quê? Não importa. O relevante é que nossa sociedade está desperta para a urgência em olhar as minorias que, numericamente, já estão se tornando maioria, se somados. Não basta, no entanto, o palavreado feito de propostas, projetos, campanhas, greves, discursos e marchas se não forem acompanhadas de medidas socioeducativas que perpassem pela escola e pela família. Se não educarmos as consciências, não chegaremos a lugar nenhum. É nesse sentido que se insere o ensinamento de Bobbio: formar as consciências. Uma ação coletiva, bem intencionada, ininterrupta, capaz de mudar um comportamento nefasto e de impensáveis consequências.
Para concluir, transcrevemos o pensamento do Prof. Neri P. Carneiro3: “[…] a maioria dos preconceitos aparece em relação ao diferente. O diferente é vítima não da novidade que traz, mas daqueles que não conseguem enquadrá-lo no pré-estabelecido. Muitos matam a novidade – e a muitas possibilidades de progresso. Os preconceituosos se esquecem que é o diferente que, além de trazer a novidade, traz a inovação, as raízes do progresso. Se todos permanecêssemos na mesmice ainda viveríamos nas cavernas e pendurados em árvores catando frutinhos”.
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1 Norberto Bobbio.
2 Raça – WIKIPEDIA, p. 3/6. Essa palavra me lembra muito um famoso acórdão do Supremo Tribunal Federal que tratou do assunto.
3 Paranaense, professor de História e Teologia, com mestrado em Educação.
Damásio de Jesus.

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