Longe de ser um artigo, este texto é apenas uma nota de utilidade pública, ante o verdadeiro circo dos horrores que têm se tornado alguns concursos públicos no Brasil.
Essa semana fui surpreendido por um e-mail de uma ex-aluna, a qual, no último domingo (27/11/2011) se submeteu à prova objetiva para delegado de polícia do Estado de Minas Gerais, aplicada pela FUMARC – Fundação Mariana Resende Costa.
No e-mail, ela me solicitou auxílio para ajudá-la com uma questão de Direito Constitucional que foi cobrada na aludida avaliação. É a questão nº 05 de ambos os cadernos de prova, que diz:
Tipo de prova 1
(http://www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/01_delegado_de_policia_acadepol_tipo_1-20111129-104253.pdf)
QUESTÃO 05
Com base no “caput” do art. 5º da Constituição Federal, pode-se indicar como desdobramentos do direito a vida, RESPECTIVAMENTE:
a) a liberdade de associação, de reunião, de crença religiosa, de expressão, de pensamento.
b) o direito de herança, de propriedade, de sucessão de bens de estrangeiros situados no País.
c) o direito do contraditório, da ampla defesa, de petição, do juiz natural.
d) o direito à integridade física e moral, a proibição da pena de morte e das penas cruéis, a proibição da venda de órgãos.
Tipo de prova 2
(http://www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/01_delegado_de_policia_acadepol_tipo_2-20111129-104304.pdf)
QUESTÃO 05
a) o direito à integridade física e moral, a proibição da pena de morte e das penas cruéis, a proibição da venda de órgãos.
b) o direito do contraditório, da ampla defesa, de petição, do juiz natural.
c) o direito de herança, de propriedade, de sucessão de bens de estrangeiros situados no País.
d) a liberdade de associação, de reunião, de crença religiosa, de expressão, de pensamento.
Percebam que as questões são idênticas, tendo a banca examinadora apenas alterado a ordem das alternativas.
Pois bem. Aquele que se interessar a consultar as provas e gabaritos divulgados terão uma desagradável surpresa, a qual, para o bem da ciência jurídica, esperamos que tenha sido apenas um “deslize” na elaboração do gabarito.
No caso do tipo de prova 1, a FUMARC disponibilizou em seu gabarito a alternativa “c” como sendo a correta e, seguindo a lógica, no tipo de prova 2, a letra “b” como alternativa correta (http://www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/delegado-20111129-102754.pdf).
Socorro!!!
Desde quando o direito ao contraditório, à ampla defesa, direito de petição e ao juiz natural são desdobramentos do direito à vida, nos termos do caput do art. 5º da CF/88? Ninguém me avisou isso na faculdade ou em qualquer livro de Direito Constitucional que eu já li (e olha que já li José Afonso da Silva, Kildare Gonçalves Carvalho, Paulo Bonavides, Gilmar Mendes etc.)! E parece que os milhares de candidatos que se submeteram às mesmas provas também não foram avisados disso, como podemos notar nesta conhecida página que abriga tópicos de discussão sobre concursos no Brasil (http://forum.concursos.correioweb.com.br/viewtopic.php?p=6438354&sid=80868d1a86d1c349a7c4bc2d97cdb7a2)
Já que mencionei o prof. José Afonso da Silva, vejamos o que ele nos diz sobre o direito à vida: “vida, no texto constitucional, (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto – atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva”. E prossegue discorrendo sobre o direito à existência, como sendo o “direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo” (In Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 194 – 195).
Para não cometer injustiças, já que citei o prof. Kildare Gonçalves Carvalho, são suas palavras: “o primeiro direito do homem consiste no direito à vida, condicionador de todos os demais. Desde a concepção até a morte natural, o homem tem o direito à existência, não só biológica como também moral (a Constituição estabelece como um dos fundamentos do Estado a ‘dignidade da pessoa humana’ – art. 1º, III).”
O candidato poderia, então, indagar: mas, se o direito à vida condiciona os demais, como dito pelo eminente constitucionalista, o contraditório, a ampla defesa, o direito de petição e ao juiz natural são, sim, desdobramentos do direito à vida e, portanto, tal assertiva estaria correta.
Pois bem. Se o direito à vida, de fato condiciona os demais, essa premissa não está errada. Porém, dentro da proposta da banca examinadora, se assim fosse, todas as demais alternativas da questão também estariam corretas, por dedução lógica!
Contudo, estamos diante de uma avaliação objetiva. Sobre isso, já tive a oportunidade de escrever um artigo, intitulado “Do controle jurisdicional de questões objetivas em concursos públicos”, em que ponderei:
De modo geral, é comum que as questões de múltipla escolha ou aquelas em que se faz uma afirmação, como é comum nas provas elaboradas pelo CESPE/UNB, não abordem temas de alta indagação e controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, uma vez que devem (ou ao menos deveriam) possuir conteúdo bem delineado na legislação, bem como, se for o caso, versar sobre posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais pacíficos, de modo a justificar sua denominação: questão objetiva. Do contrário, o examinador estaria avaliando os conhecimentos do candidato em campo inapropriado para tanto, na medida em que, conhecer os posicionamentos controversos dos estudiosos do Direito e dos órgãos jurisdicionais demanda maior articulação por parte do candidato, não cabendo no campo restrito de uma questão objetiva (http://atualidadesdodireito.com.br/vitorguglinski/2011/11/20/do-controle-jurisdicional-de-questoes-objetivas-em-concursos-publicos/#more-38).
Poderíamos conjeturar durante séculos sobre as questões metajurídicas envolvendo o assunto, discutindo sobre todos os campos da existência humana sobre os quais o direito à vida irradia sua influência. Contudo, não é em uma avaliação objetiva que isso deve ser discutido, uma vez que não há margem para argumentação em uma questão de múltipla escolha.
É óbvio, caro leitor, que a assertiva correta na questão examinada é aquela que aponta como desdobramentos do direito à vida o direito à integridade física e moral, a proibição da pena de morte e das penas cruéis, a proibição da venda de órgãos.
Vejamos o que dizem Celso Spitzcovsky e Leda Pereira da Mota sobre o assunto, elencando as hipóteses não exaustivas (numerus apertus) do texto constitucional:
Como desdobramento, torna-se proibida a ampliação de pena de morte no Brasil, ressalvada a exceção estabelecida pelo próprio Constituinte originário no art. 5º, XLVII, vale dizer, guerra declarada (…)
O segundo desdobramento do direito à vida diz respeito às “condições mínimas de sobrevivência”, aqui podendo ser incluído o direito ao trabalho remunerado, habitação, saúde, alimentação, educação, lazer etc. (…)
Por fim, tem-se o direito a um tratamento digno por parte do Estado, que se materializa, entre outras coisas, pela proibição de tortura, de penas cruéis ou degradantes. (..)
Também entre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos podem-se encontrar novos desdobramentos, quando então a Constituição não só proíbe explicitamente a prática de tortura, como a define como crime, estipulando, inclusive, aqueles que responderão por ele.
É o que se verifica da leitura dos incs. III, XLIII e XLIX do art. 5.º:
“Art. 5.º (…)
(…)
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
(…)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
(…)
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (SPITZCOVSKY, Celso; MOTA, Leda Pereira da. Direito Constitucional, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010, pp. 383-386).
Por fim, o leitor mais atento poderá indagar: mas, e a proibição de venda de órgãos? Essa hipótese não está expressa no art. 5º da CF/88!
Muito bem. Ocorre que deve-se atentar para o disposto no § 2º do art. 5º da CF/88, cuja dicção é: § 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Tendo em vista que a dignidade humana é tida como princípio reitor da Constituição Federal, a venda de órgãos atentaria contra tal princípio, com a potencialidade de estimular o mercado negro de comércio de órgãos, desencadeando matanças com essa finalidade. Aliás, não faz muito tempo que a mídia noticiou alguns casos a respeito.
Destarte, não se pode deixar de proceder a uma análise sistemática e teleológica do princípio da dignidade humana e do direito à vida. Como dito anteriormente, se formos considerar a alternativa apontada pelos gabaritos fornecidos pela FUMARC como sendo a correta, dever-se-á também considerar as demais e, se assim for, a questão deveria ser anulada, por multiplicidade de respostas corretas. Contudo, de modo a preservar a própria veracidade do texto constitucional, o correto seria a alteração do gabarito, considerando como desdobramentos do direito à vida o direito à integridade física e moral, a proibição da pena de morte e das penas cruéis, a proibição da venda de órgãos.
Manter como corretos os gabaritos divulgados beira a esquizofrenia.
Vitor Guglinski.