sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sobre as cotas raciais

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu ontem, por unanimidade, que o sistema de cotas raciais em universidades é constitucional.
Eu, particularmente, também sou a favor.
É sabido que as escolas públicas do ensino primário e secundário não tendem a proporcionar uma base educacional sólida que permita continuar os estudos em nível superior.  E os chamados “cursinhos” para o vestibular são caríssimos.
A maioria dos alunos que conseguem vagas  nas mais prestigiadas universidades públicas vêm da classe média ou da alta e estudou em escolas particulares.
Cerca de 20 universidades federais brasileiras já adotaram as ações afirmativas por sua própria iniciativa e o desempenho acadêmico dos alunos admitidos pelo sistema de cotas é tão bom quanto ou melhor do que a do resto dos estudantes.
Os resultados são bastante positivos em termos de justiça social, em um país cuja população negra e indígena têm dificuldade em ter acesso a até mesmo seus direitos mais básicos, como é fato neste País. Basta ver que apenas 6,1 por cento de negros entre as idades de 18 e 24 no Brasil estudam em  universidades.
É fato que se essas políticas compensatórias não forem adotadas, milhões de estudantes brasileiros não terão chance de entrar em uma universidade de boa qualidade.
Quem fala que as cotas são uma forma de “racismo às avessas” não tem contato com a realidade brasileira e nunca  sentiu preconceito racial na sua vida quotidiana.
Entendo que ao lado do sistema de quotas,  o governo adote medidas paralelas com vistas à melhoria da educação escolar pública primária e secundária.
Enfim, concordo com o professor José Vicente, diretor da universidade Unipalmares, em São Paulo, que admitiu que o sistema de quotas pode não ser a melhor ferramenta “Mas ela é a única que temos, e enquanto não temos qualquer outro mecanismo, temos que continuar a usá-los. Se não, vamos passar de 500 anos à procura de outro instrumento para resolver o problema”.

Parabens, Brasil.

Postado em 27 de abril de 2012 // Cotidiano

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Conselheiro do CNJ reconhece dificuldade em punir ricos e poderosos

“É difícil punir as pessoas com bom poder aquisitivo”, pontuou o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Gilberto Valente Martins durante a palestra sobre “O Papel do Judiciário na Improbidade Administrativa”, nesta terça-feira (17), no Salão Nobre do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES)
Para ele, as pessoas com poder aquisitivo e político conseguem criar empecilhos contra magistrados e procuradores e, ainda, possuem bons advogados, que prolongam o tempo do processo até as últimas instâncias. “Há, muitas vezes, obstrução na Justiça. Eu mesmo ainda estou sofrendo processo na tentativa de desarticular e evitar sentença de improbidade administrativa. Essas coisas que vêm acontecendo contra membros do Ministério Público e magistrados desestimula a condenação de ímprobos. É uma preocupação permanente e inibe o julgamento”, afirmou Martins.

O conselheiro ainda defende a mudança no sistema de computar a produtividade dos magistrados.

Hoje, um processo de execução fiscal tem o mesmo peso que o de uma ação civil pública impetrada contra agentes públicos, mas é menos complexa. “Esses valores precisam ser revistos para motivar os magistrados a analisarem os casos de mais complexidades”, sugeriu. Cadastro Um Cadastro Nacional de Improbidade Administrativa foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça e concentra informações de todos os casos transitados e julgados em 14 estados que já aderiram ao sistema.

No mês de agosto, a Lei nº 8429, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa, completa 20 anos de sanção. Segundo o conselheiro, o histórico de casos de improbidade administrativa não é só um problema brasileiro, mas de todos os países de colonização latina. “O Brasil está na frente no julgamento de ações dessa área que muitos países, como Itália, França e Portugal”, pontuou.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os bastidores do mais importante julgamento do STF

Na curva de acesso ao STF, o taxista dá seu veredicto: “A senhora não vai conseguir entrar vestida desse jeito, não”. O “desse jeito” era um vestido com mangas até o meio do braço e comprimento até a patela, preto como azeviche, que insinuava a proeminência das minhas clavículas. “Nem com este xale?”, inquiri, enrolando uma echarpe no ombro. “Sei não, já deixei muita mulher aqui que mostrava o pescoço e ficou na porta sem solução”, afirmou, assinando o recibo da corrida. “Mas Deus é mais, a senhora há de conseguir.”

A fila exibia de tudo, cobertos e descobertos, e quem não parecia sóbrio o suficiente para peitar o cerimonial arrumou um casaco ou voltou pra casa. Os autorizados passamos por um raio X ao lado da entrada central, bloqueada por um busto da Justiça esculpido por Alfredo Ceschiatti. Já no plenário, e apesar dos 15 minutos de atraso, nem sombra dos ministros. Mas um homem de toga circulava na frente das câmeras da TV Justiça. Era Luciano Alencar da Cunha, representante da Associação Jurídic0-Espírita de Minas Gerais, que pleiteava dar a palavra pró-vida. Queria concorrer com Luís Roberto Barroso, defensor da ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que motivara o julgamento da interrupção da gestação de fetos sem cérebro. Barroso tinha direito à sustentação oral do que emergia como a mais importante decisão da história da Corte, nas palavras do presidente Cezar Peluso, que aos 30 minutos do primeiro tempo adentrou o recinto depois que uma sirene instou a plateia a ficar de pé.

Atrás dele vieram o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o escrivão Luiz Tomimatsu e mais nove ministros, todos seguidos pelos seus respectivos “capinhas”, meirinhos que vieram ao mundo para servir. Paramentados com minipelerines pretas, eles ajudam os ministros a vestir as togas, trazem-lhes o café, levam a xícara usada, carregam a papelada do processo, ajeitam o laptop, ouvem e dizem coisas ao pé do ouvido, num vaivém ao mesmo tempo esvoaçante e silencioso. Nesse primeiro momento, puxam as cadeiras dos ministros como garçons. Um capinha está de folga, o de Dias Toffoli, que se declarou impedido de votar neste julgamento por ter participado do processo quando advogado geral da União e por ter emitido parecer a favor da legalidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo. O escrivão anuncia quase inaudivelmente o que será julgado – a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54 – e o presidente Cezar Peluso resmunga o nome de Luís Roberto Barroso, que então se posiciona de frente para o tablado e de costas para a audiência, onde uma legião de celulares, iPads, iPods, MacBooks, Dells e singelos post its passa a agir na surdina.

Barroso centra sua sustentação “na tortura psicológica que é sair da maternidade com um pequeno caixão e ainda secar o leite produzido para ninguém”. Afirma que estamos atrasados, “a descriminalização desse caso é a posição de todos os países democráticos do mundo” e enumera Canadá, EUA, França, Espanha, Japão. Também insiste que a interrupção terapêutica de gestação de feto anencéfalo não é aborto porque o cérebro do feto nem sequer começa a funcionar. “Então não há vida em sentido técnico e jurídico. De aborto não se trata.”
Por aí segue sua argumentação, seguida da do procurador-geral da República em linha semelhante, que enfatizou a confortável certeza médica sobre o diagnóstico de anencefalia e que a interrupção desse tipo de parto é absolutamente atípica. Optou Roberto Gurgel por sustentar o parecer que defende a liberação do aborto de anencéfalos, embora lembrando que o assunto é tão polêmico que sua própria instituição chegou, em momentos díspares, a emitir dois pareceres contrários.

Peluso rezinga então o nome do relator Marco Aurélio, que começa o que se estenderia por quase duas horas e meia de voto favorável à permissão do aborto de anencéfalos, sem que Peluso lhe dirigisse o olhar. Nesse meio tempo Joaquim Barbosa já havia dado uma canseira no seu capinha. Ficara de pé apoiado no espaldar da poltrona, sentara numa cadeira ergonômica de encosto azul, voltara a ficar de pé com uma das solas sobre um suporte de madeira, sentara na poltrona tradicional e então saíra de cena, talvez para tentar aliviar no gabinete sua radiculite do plexo lombar.
O carioca Marco Aurélio centrou fogo na laicidade do Estado. “Concepções religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada” – apesar de a expressão “Deus seja louvado” vir impressa em todas as notas de dinheiro do nosso país, até nas mais recentes, lembra ele –, o que levou alguns a abrir a carteira para checar a veracidade do fato. Enquanto falava do avanço da medicina, “avanço que me permite saber que serei avô de Rafaela”, a menina Vitória de Cristo chega no colo da mãe, Joana Croxato. Vitória, com 2 anos e 6 meses, tem acrania. O diagnóstico foi dado na 12ª semana de gravidez e seus pais resolveram levar a gestação a termo. Os três lá estavam a convite do Movimento Brasil sem Aborto, sentaram-se de frente para os ministros e Joana ficou acariciando a cabeça da filha, cuja calota coberta de cabelos foi fechada por cirurgia.

O ministro Ayres Britto fita longamente a criança, a ministra Rosa Weber também. E, seguindo a ordem dos mais novos para os decanos a partir do relator, ela, a gaúcha Rosa, passa a explanar seu voto dizendo que fora visitada por Vitória de Cristo e sua mãe no dia anterior. A ministra, com certo nervosismo, passa a questionar a falácia naturalista e os paradigmas científicos, menciona Plutão, que foi planeta e deixou de sê-lo, termina dizendo que o feto anencéfalo não constitui vida segundo o direito jurídico e vira motivo de chacota em tweets, que dizem que Rosa foi a Plutão e voltou.
O próximo na lista seria Luiz Fux, o ministro de vasta cabeleireira que alguns juram ser peruca e cujo voto de minerva escalpelou a Lei da Ficha Limpa em 2010. Mas Joaquim Barbosa, num raro momento de presença, com um lenço branco à mão, atropelou a ordem da antiguidade e deu seu voto, curto e grosso, dizendo que “seria contrassenso chancelar a liberdade no caso de aborto resultante de estupro e vedar no casos de malformação fetal gravíssima”. Saiu para não mais voltar – e votar.

Fux, preocupado em afirmar que o direito ao aborto no caso de anencéfalo era isso, um direito, e não uma obrigação de abortar, foi dos que mais citaram artigos científicos. Os ministros, aliás, receberam uma pasta de referências da biblioteca do Supremo baseada nas seguintes palavras-chave: aborto eugênico, aborto, anencefalia, biodireito, bioética, infanticídio e nascituro. Estavam ali mencionadas 110 obras, 225 periódicos, 34 artigos de jornais, 6 textos na base de dados HeinOnline, 8 na Scielo, 3 projetos de lei e acórdãos de jurisprudência. A maioria mencionou as audiências públicas promovidas pelo STF sobre o assunto em 2008, quando foram ouvidas 25 instituições, além de ministros de Estado e cientistas. Alguns magistrados rasgaram o verbo em italiano, outros em inglês, alguns em alemão, quase todos em latim. E usaram poetas, como Chico. Cármen Lúcia e Ayres Britto praticamente recitaram juntos “A saudade é o revés de um parto / é arrumar um quarto / de um filho que já morreu”.

Procuradora-geral no governo Itamar Franco, Cármen Lúcia foi lapidar: “O útero é o primeiro berço de todo ser humano. Quando o berço se transforma em pequeno esquife, a vida se entorta”. Acrescentou no seu voto um personagem até então não mencionado, o pai da criança, e por isso foi o único parecer que emocionou Rosivaldo, personagem do documentário Uma História Severina, da antropóloga Debora Diniz e da jornalista Eliane Brum. Rosivaldo é marido de Severina e ambos travaram uma batalha de sete meses para abortar um feto anencéfalo por liminar em 2005. Estavam os dois e o único filho na plateia, vindos de Chã Grande, no brejo pernambucano, trazidos pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Às 18h, Ricardo Lewandowski toma o microfone para fechar o primeiro dia de votação com voto contrário aos anteriores. O carioca bate o martelo em que “não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem”. Essa atribuição, diz ele, caberia ao Congresso, “que nunca fez parecer sobre incluir o feto anencéfalo entre os abortos permitidos”. Peluso, que dessa vez deixara o computador de lado para prestar evidente atenção ao voto, encerrou os trabalhos e anunciou a segunda rodada no dia seguinte, a partir das 14h.

Antes de se retirar pelos fundos em direção ao gabinete, Marco Aurélio desce do tablado para dar entrevistas e cumprimentar os plantadores de brócolis Rosivaldo e Severina. Aproveita e comenta o que já corria na rede: “Acabaram de representar contra mim!” Falava da abertura de processo por crime de responsabilidade requerida por parlamentares das bancadas evangélica e católica do Congresso a Sarney alegando que Marco Aurélio emitira juízo de valor em entrevistas dadas ao SBT e à Veja, em 2008, sobre o aborto de fetos anencéfalos. Teria, com isso, antecipado seu voto no julgamento. “Se precisar de advogado, estou aqui”, prontificou-se Luís Roberto Barroso, também defensor de Cesare Battisti.
Casa de Suplicação. Bem menos concorrido que no primeiro dia, o STF, antiga Casa de Suplicação, mostrou-se esvaziado do lado de fora. A vigília de terça para quarta não se repetiu de quarta para quinta e um buzinaço econômico pela causa dos poupadores acabou embalando o voto de Ayres Britto. Sua frase que mais reverberou foi: “Se todo aborto é uma interrupção de gravidez, nem toda interrupção de gravidez é um aborto”. Mas ele também se saiu com “O grau da civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da mulher” e “A natureza também se destrambelha”, aí copiando Tobias Barreto, uma de suas fontes alheias ao calhamaço da biblioteca. O sergipano Ayres Britto fala muita coisa de pronto e, por isso, não se conseguia a íntegra do seu discurso na internet.

Um desses repentes foi um aparte a Gilmar Mendes, quando este afirmou, coçando o gogó, que “as entidades religiosas são quase que colocadas no banco dos réus, como se estivessem a fazer algo indevido”. Gilmar disse que os espíritas deveriam participar do debate, no que foi aplaudido visualmente pelo representante da Associação Jurídico-Espírita de Minas Gerais, e que “é preciso ter muito cuidado com faniquitos anticlericais”, porque “daqui a pouco nós talvez tenhamos a supressão do Natal, a revisão do calendário gregoriano ou a demolição do Cristo Redentor”. Alguns da plateia riram, mas silenciaram com o aparte de Britto: “O Cristo in natura talvez valha mais que o Cristo pasteurizado”.

Gilmar não votou contra o direito de aborto de anencéfalo, mas a favor, por entender não parecer tolerável que se imponha à mulher tamanho ônus na falta de um quadro legal para resolver a questão. Sua ressalva disse respeito ao atendimento médico dessa mulher, dado que seu vizinho de mesa, Celso de Mello, também destacou. Celso, avesso a computadores, tinha umas 30 pastas de papel in natura atrás de si com faixas escritas STF amarrando-as todas.

Na cabeceira da Corte, em seu provável último julgamento antes de entregar o posto a Ayres Britto no Dia do Índio, Cezar Peluso clarificou uma posição pré-sabida, a de que seria voto contra nesse julgamento. Por diferentes motivos: porque “o feto é sujeito de direito, e não coisa nem objeto de direito alheio”, porque “não é possível detectar o grau de anencefalia e outras deformidades graves”, porque a gravidez de anencéfalo “não é sofrimento injusto, como a gravidez fruto do estupro”, porque “é assombrosa a semelhança entre aborto de anencéfalo e prática eugênica”. Atropelando algumas últimas letras, classificou a situação como “lamentável, não podendo sequer encerrar dizendo que a douta maioria tinha razão”.

Ainda se seguiria uma fase tensa, com os ministros discutindo se seria o caso de incluir regras para a implementação da decisão, como um “desde que a mulher seja atendida por três médicos, quatro até”, quando o relator afirmou que a maioria já havia decidido pela liberação da interrupção da gravidez de feto sem cérebro. Assim apenas. A Peluso restou ler o acórdão. Não sem antes ouvir os berros de Maria Angélica de Oliveira, autointitulada participante de uma associação de espíritas, que, sentada na primeira fila, chamava os defensores da interrupção de assassinos. Altivos, em ordem regimental, lá se foram os dez com seus capinhas esvoaçantes a tiracolo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O FIM DO VISTO OBRIGATÓRIO

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
12/4/2012

Há muito tempo o Brasil não esteve tão mais próximo dos Estados Unidos como neste encontro da presidente Dilma Rousseff com o presidente Barack Obama. Formalmente – de acordo com os comunicados diplomáticos sempre muito cautelosos na definição de agendas –, seria apenas uma retribuição à visita que o dirigente norte-americano fez ao Brasil. Na realidade, porém, essa viagem representa um avanço significativo em todas as áreas. Talvez a menos expressiva tenha sido a pauta comercial, desde que são muitas e complexas as pendências, quase sempre ligadas a protecionismos de um lado e de outro, coisas muito naturais no mercado globalizado e assim mesmo progressivamente atenuadas.
Entretanto, o mais apropriado balanço da viagem está em acentuar as conquistas pontuais para um lado e outro. De nosso lado, a atenção que está sendo dada à qualificação de estudantes brasileiros nos Estados Unidos. As nações que apresentaram maior desenvolvimento nas últimas décadas – como China e Coreia do Sul – percorreram os mesmos caminhos que a presidente Dilma Rousseff acaba de percorrer, particularmente a Universidade de Harvard e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugares onde é possível encontrar a capacitação que teve – por exemplo – o pernambucano Fábio Thiers, com Ph.D. e dois pós-doutorados nesses dois grandes centros de pesquisas, entrando na relação de profissionais altamente qualificados, dentro mesmo dos Estados Unidos.
De parte do presidente Barack Obama, não poderia ser melhor a sinalização de que o Brasil tem hoje o status de um País preferencial nas relações com os Estados Unidos. Torna-se mais fácil tirar o visto de entrada, que depois do 11 de Setembro havia se transformado numa tortura e a razão para essa atenção generosa é muito visível na onda de brasileiros que despejam bilhões de dólares em Miami e outros centros de consumo. Uma relação de tal forma desejável que a presidente Dilma Rousseff volta de sua rápida viagem com a expectativa, na bagagem, de incluir o Brasil no Programa de Isenção de Vistos, um privilégio hoje reduzido a 36 países de todo o mundo. Isso significa que caminhamos para entrar nessa relação e atribuirmos o princípio da reciprocidade, recebendo os cidadãos norte-americanos sem a exigência do visto.
Se mais não se buscar, podemos admitir, resumidamente, que a viagem de nossa presidente aos Estados Unidos foi muito proveitosa e representou um processo de distensão desejável, sem submissão. O Brasil é hoje o segundo País de maior expressão na geopolítica das Américas, pelo peso de nossa economia, pelo lugar que ocupamos entre os emergentes – o clube dos Brics – e porque já somos capazes de falar e sermos ouvidos, sem que se anteponha às nossas posições qualquer vício ideológico. Apenas a manifestação da nossa soberania. E o que mais emblematicamente poderá representar essa nova relação de nosso País com a nação mais poderosa e, ainda, mais rica do mundo, será, exatamente, o fim do visto obrigatório.

DIREITO DE MÃE

ZERO HORA (RS)
12/4/2012

O Supremo Tribunal Federal iniciou ontem e deve concluir hoje o julgamento que tende a assegurar às mulheres brasileiras o direito de interromper a própria gravidez quando a ciência médica constatar que o feto tem anencefalia, uma grave e irreversível malformação caracterizada pela falta parcial ou total do encéfalo e da caixa craniana. É consenso entre os especialistas que seres nestas condições não têm qualquer chance de vida extrauterina. A prevalecer a tendência manifestada ontem pela maioria dos ministros, o tribunal simplesmente concederá às mulheres uma prerrogativa que nunca lhes deveria ter sido suprimida: a de escolher se querem continuar gestando um ser que jamais se desenvolverá ou se preferem evitar o sofrimento e os riscos de uma gestação inconsequente no seu propósito mais sublime, que é o de dar vida a outra pessoa.

Trata-se, acima de tudo, de um avanço humanitário que ainda precisa ser passado para a legislação, com o objetivo de atualizá-la e compatibilizá-la com os novos tempos. Quando o Código Penal Brasileiro foi elaborado, a medicina não dispunha de tecnologia e conhecimento para diagnosticar a anencefalia de um feto no ventre da mãe. Era lógico, portanto, que os casos de aborto legal se restringissem a gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a gestante. Agora, porém, exames de ultrassom e ressonância magnética, feitos entre a terceira e a quarta semanas de gestação, identificam com total certeza a existência da anomalia, possibilitando uma interrupção que preserva a mulher de riscos físicos e do desgaste emocional de gerar um natimorto.

Compreende-se que grupos religiosos e pessoas apegadas a rígidos padrões morais considerem que a vida é inviolável, mesmo quando sentenciada à extinção em, no máximo, algumas horas. Merece respeito até mesmo o argumento ilógico de que o sofrimento (no caso, da mãe que jamais conviverá com o filho) engrandece as pessoas. Se for mesmo confirmada, a decisão do Supremo em nada alterará este aspecto: as mulheres que assim o desejarem poderão levar a gestação até o fim. A Suprema Corte apenas está garantindo a elas o direito de exercer o livre-arbítrio e de fazer a escolha que lhes parecer mais adequada. Tirar-lhes esta autonomia é que representava um arbítrio.

Ainda que todos nasçamos para morrer, é desumano e antidemocrático obrigar uma pessoa a gerar “algo que jamais será alguém”, como alegou o ministro Carlos Ayres Britto na antecipação de seu voto, utilizando uma imagem que choca mas que também toca no ponto essencial. Ninguém mais, a não ser a própria gestante de posse de informações confiáveis sobre a anomalia que carrega, pode ter o direito de tomar uma decisão tão íntima e tão determinante para a sua vida. É um direito único e inalienável de mãe.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A arte da percepção distorcida

Digamos que na visão do STJ, meninas de 12 anos têm idade e maturidade para escolher a profissão de prostituta. Cáspite! Essa nem é a idade para ser aprendiz, 14 anos. Ainda mais que a bendita constituição veda, para menores de 18, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre (CF 7 XXXIII).
Ora, ora, o trabalho de prostitutas mirins quase sempre é noturno, perigoso e insalubre.
Imagine a cena: Uma ministra sai do teatro em direção ao carro, e observa, na penumbra, um turista sexual se enroscando sobre uma pirralha. De soslaio, calcula que a guria não deve ter 14 anos: pouco corpo, pouco seio, pouca bunda. Mentaliza o dispositivo penal e, de si para si, conclui, balbuciando, horrorizada: Ó meu Deus, é um estupro! Num átimo, aciona a polícia, que estava por perto, e chega, em segundos. Não pode sair, é testemunha. Aproxima-se da abordagem policial, e ouve quando a menina diz “ interar doze, mêx que vem”.
O cioso agente da lei, instigado pela ministra, indaga o que a garota faz ali, naquela hora. “Aqui é meu ponto, né; diz pra pirua aí que eu trabalhano, né; esse é meu criente, e ele tem grana; vai vê se tô na isquina.
Percebendo que se tratava de uma relação de trabalho, apesar de noturno, perigoso e insalubre, a ministra se afasta, com a consciência aliviada, pois, se era trabalho, não era um estupro. Antes de chegar ao carro, ainda ouviu a guria, em voz alta, responder ao policial: “Faz tempo; eu não tinha dez anos”.
Ao deitar, a ministra perdeu o sono. Quase não dorme, agulhada por uma forte inquietação: na pressa, esquecera de ver se a pivete tinha carteira profissional.

Surrupiado d‘O Parquet

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Fiasco na Prova Prática da OAB – 2012


Com alguma frequência recebo pedidos para discussão e estudo de casos aqui no blog, e por falta de tempo – ou esquecimento mesmo - findo por não fazê-lo. Mas hoje vejo uma excelente oportunidade de dar inicio às discussões.
O caso trata da prova da OAB desse ano onde o colega advogado Guilherme Ferreira faz algumas observações, críticas quanto à solução do caso.
Estejam livres para comentar.

PEÇA PRÁTICO-PROFISSIONAL
No dia 10 de março de 2011, após ingerir um litro de vinho na sede de sua fazenda, José Alves pegou seu automóvel e passou a conduzi-lo ao longo da estrada que tangencia sua propriedade rural. Após percorrer cerca de dois quilômetros na estrada absolutamente deserta, José Alves foi surpreendido por uma equipe da Polícia Militar que lá estava a fim de procurar um indivíduo foragido do presídio da localidade. Abordado pelos policiais, José Alves saiu de seu veículo trôpego e exalando forte odor de álcool, oportunidade em que, de maneira incisiva, os policiais lhe compeliram a realizar um teste de alcoolemia em aparelho de ar alveolar. Realizado o teste, foi constatado que José Alves tinha concentração de álcool de um miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões, razão pela qual os policiais o conduziram à Unidade de Polícia Judiciária, onde foi lavrado Auto de Prisão em Flagrante pela prática do crime previsto no artigo 306 da Lei 9.503/1997, c/c artigo 2º, inciso II, do Decreto 6.488/2008, sendo-lhe negado no referido Auto de Prisão em Flagrante o direito de entrevistar-se com seus advogados ou com seus familiares.
Dois dias após a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, em razão de José Alves ter permanecido encarcerado na Delegacia de Polícia, você é procurado pela família do preso, sob protestos de que não conseguiam vê-lo e de que o delegado não comunicara o fato ao juízo competente, tampouco à Defensoria Pública.
Com base somente nas informações de que dispõe e nas que podem ser inferidas pelo caso concreto acima, na qualidade de advogado de José Alves, redija a peça cabível, exclusiva de advogado, no que tange à liberdade de seu cliente, questionando, em juízo, eventuais ilegalidades praticadas pela Autoridade Policial, alegando para tanto toda a matéria de direito pertinente ao caso.
(Valor: 5,0)
 
A peça prático-profissional do VI exame unificado da OAB, a meu ver, foi um verdadeiro fiasco. Justifico:
Da análise da questão, percebe-se, in locu, que o mais prudente seria o manuseio do habeas corpus, em razão das diversas ilegalidades no auto de prisão em flagrante, tais como: a violação ao direito de não produzir provas contra si mesmo (Nemo tenetur se detegere); a não comunicação ao Ministério Público (Lei 12.403/2011); a não comunicação à Defensoria Pública, ao Juiz e à família do preso (artigo 306, caput e parágrafo único CPP).
Acontece que a banca exigiu peça cabível “exclusiva de Advogado”, no que tange à liberdade. Ora, como é cediço, o habeas corpus é uma ação constitucional e que pode ser utilizado por qualquer pessoa, inclusive pelo Ministério Público. Assim, resta prejudicado, no caso concreto, o manuseio do habeas corpus, haja vista não ser peça exclusiva de Advogado.
Só restaria, então, o pedido de relaxamento da prisão em flagrante.
Contudo, esquece o examinador que, segundo a questão, a prisão sequer fora comunicada ao Juiz, portanto, pergunta-se: como requer relaxamento da prisão em flagrante sem a devida comunicação? Será, então, que o Advogado apresentaria uma simples petição ao Juiz e este deveria acreditar tão somente nas alegações do Advogado? Caso não acreditasse, deveria pedir informações? Em tal procedimento há possibilidade de pedido de informações? Certamente que não.
Mas não é só: qual juiz deveria ser comunicado? Seria o Plantonista? Seria o Juiz Criminal da Vara de Trânsito? E, por acaso, existiria essa Vara especializada na comarca?
A meu ver, com o devido respeito, uma prova muito mal elaborada.
E mais: esquece, ainda, o examinador, que o Código de Processo Penal foi alterado pela Lei 12.403/2011.
Vejamos, portanto, a nova sistemática:
Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: 
I – relaxar a prisão ilegal; ou 
II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou 
III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. 
Ora, o relaxamento da prisão ilegal deve ser feito de ofício pelo Juiz e, caso entenda que a prisão esteja legal, deverá homologá-la e decretar a prisão preventiva. Assim, como é cediço, prisão preventiva se revoga e não se relaxa.
Decerto a Constituição Federal afirma que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente” (e essa é uma verdade que não se pode olvidar). Portanto, como se nota, a Constituição não restringe tal possibilidade somente ao pedido de relaxamento de prisão. Contudo, segundo a praxe forense, repise-se, prisão preventiva se REVOGA e não se relaxa.
Arisca-se dizer, sem receio de equívoco, que acabou qualquer possibilidade de pedido de relaxamento de prisão em flagrante. Salvo se, antes mesmo do juízo de legalidade da prisão pelo Juiz, o Advogado atravessar um pedido de relaxamento da prisão ilegal (como efetivamente acontece em muitos casos). Ainda assim, deveria existir, no mínimo, distribuição dos autos à uma das Varas Criminais, o que não se nota no referido exame da ordem.
Feitas essas considerações, a Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Amazonas presta solidariedade aos candidatos prejudicados com a prova, e se põe à disposição para qualquer orientação.

 Guilherme Torres Ferreira
Advogado e Conselheiro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Amazonas

JUIZADOS QUE NÃO JULGAM

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
2/4/2012

“Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, uma das mais célebres frases do patrono dos advogados brasileiros, Rui Barbosa, deveria ser o emblema de todos os magistrados e todos os tribunais brasileiros. Mas se ela não está presente como inspiradora para mudar o que aí está, é reconhecida pelo Judiciário, que antepõe às suas dificuldades a ausência dos meios apropriados para enfrentar a monumental carga de demandas a que é submetido. Por isso foi criado em novembro de 1984 o Juizado de Pequenas Causas, transformado pela Constituição Federal – em decorrência do seu artigo 98 – em Juizado Especial Cível e Criminal.
O grande problema é que, criado para acelerar a prestação jurisdicional, esse instrumento do Judiciário vem sendo inteiramente contaminado pela velha doença da morosidade, da lentidão, da “injustiça qualificada e manifesta”. Reportagem recente deste jornal mostra como os Juizados Especiais no Grande Recife estão abarrotados de processos, fazendo com que um ano de espera para a realização de uma audiência seja considerado “tolerável”. A assimilação dessa deformação leva ao acomodamento mas, também, à descrença, à revolta e à busca de soluções extrajudiciais, nem sempre razoáveis mas quase sempre com prejuízo para as partes.
Uma das explicações possíveis para esse retrocesso do que parecia ser a solução ideal, inspirada em modelos exitosos em outros países, é a de que muitas pretensões que antes não eram submetidas à Justiça agora deságuam nos Juizados Especiais, aonde são levadas as causadas de menor valor. Como está acontecendo nos litígios de consumidores que se sentem lesados e que correm atrás de compensações. Significa dizer que o que antes era tratado como “caso perdido” ou até encarado como um caso de polícia e não de Justiça agora é submetido ao ritual do Judiciário, sabidamente demorado pelas formalidades e pelo volume.
Aí é onde entram considerações mais amplas, igualmente complexas mas as únicas possíveis para o enfrentamento do problema que contribui para fazer do nosso País uma nação sujeita a um ordenamento jurídico paquidérmico, atrasado e responsável em grande parte pelo nosso atraso. Porque não basta apregoar que somos a sétima ou oitava economia do mundo, que fazemos parte dos países emergentes, que fazemos cair barreiras extremamente rigorosas para entrar em um país como os Estados Unidos porque temos maior poder de consumo.
É preciso a esse cenário virtuoso acrescentar alguns outros, entre os quais, a lentidão com que assimilamos os avanços tecnológicos e mantemos, ainda, estruturas arcaicas, grande parte delas abrigadas no Judiciário. Essa deformação, aliás, não é “privilégio” do Judiciário. A burocracia em que se movem os outros Poderes e seus órgãos é responsável pelas dificuldades de modernização do País, pela nossa falta de competitividade. Uma doença tão grave que até um Ministério da Desburocratização criado para enfrentá-la terminou sendo vítima dela.

O PAPA EM CUBA

FOLHA DE S. PAULO
2/4/2012

Encontro de Bento 16 com Raúl Castro não sinaliza mudança profunda no regime ditatorial, mas uma convergência de interesses

Diferenças simbólicas e históricas distinguem a viagem do papa João Paulo 2º a Cuba, em 1998, da visita de Bento 16 à ilha.
O pontífice polonês sempre encarnou, pessoalmente, um símbolo de mudança. Fez carreira eclesiástica sob a vigilância do partido único em seu país e, mais tarde, foi um protagonista no vitorioso esforço para derrotar o comunismo na Europa.
Sua presença em Cuba, 14 anos atrás, revelava o enfraquecimento do regime castrista, que já não contava com a ajuda econômica da União Soviética e tentava mitigar seu isolamento internacional com uma visita de prestígio.
Bento 16 não teria como produzir efeito semelhante, nem seria de seu interesse. Enquanto o antecessor era um cruzado anticomunista com papel relevante na política internacional, o ex-cardeal Ratzinger, em seu pontificado, tem se voltado para problemas internos à igreja e à ortodoxia da fé.
Foi a Cuba, assim, para cuidar de seu rebanho e consolidar o espaço que a igreja tem ganhado no país -ora sob a tutela de Raúl Castro- desde a viagem de João Paulo 2º.
Até o final dos anos 90, os católicos cubanos não podiam sequer comemorar publicamente o Natal. Hoje Cuba conta com relativa liberdade religiosa, e o bispo de Havana é interlocutor importante para negociar mudanças lentas, graduais e seguras dentro do regime.
O pragmático Raúl Castro comanda reformas "chinesas" em seu país, com estímulos à atividade econômica privada e quase nenhum espaço para abertura política. É de sua conveniência manter abertos canais com uma instituição milenar, que não parece apressada em sua inegável defesa das liberdades individuais na ilha.
Não surpreende, portanto, que Bento 16 tenha sido cuidadoso ao se referir aos prisioneiros do regime, evitando chamá-los pelo nome: presos políticos. Em seus discursos, porém, não deixou de fazer elaborada defesa intelectual da liberdade, em todas as suas formas.
Ao longo da semana, a ditadura cubana permitiu e encorajou manifestações públicas de fé. No entanto, antes da visita papal, reforçou medidas que são praxe há mais de 50 anos para evitar protestos políticos: opositores e dissidentes foram encarcerados.
Parece ainda distante o dia em que Cuba, como Bento 16 disse desejar em seu discurso de despedida, venha a ser "a casa de todos e para todos os cubanos, onde convivam a justiça e a liberdade".