sábado, 13 de outubro de 2012

Procurador, detenha o passaporte deles!

Fernando Conceição


Os seguidores da seita lulo-petista estão atordoados. Gostariam de abertamente espinafrar o recém-eleito (10/10/12) presidente da Suprema Corte brasileira, Joaquim Barbosa, mas como não são racistas, ou se o são, são racistas envergonhados de fino trato, metaforizam sua ira contra este.
Declaram sua fúria contra o STF pelo resultado acachapante da Ação Penal 470, o mensalão do PT. Lula, que andou vomitando aos quatro cantos o mantra que “o mensalão nunca existiu”, até agora engoliu a seco a condenação dos seus “braços direitos”. Zé Dirceu, Zé Genoíno, Delúbio Soares vão mesmo para a cadeia em 2013!
A menos que fujam do país. E uma leitura cuidadosa das “notas públicas” que tanto o ex-primeiro-ministro (como qualificou o presidento do STF Ayres Britto) lulista José Dirceu, como o ex-presidente do PT, José Genoíno, divulgaram logo após o resultado final da votação condenatória do Supremo, permite antevê em suas entrelinhas a construção de um discurso que justifique a fuga. Que o Procurador Geral da República se acautele e já solicite judicialmente a retenção de seus passaportes.

SALVO-CONDUTO POR TER COMBATIDO A DITADURA?
Os atuais condenados se julgam superiores a outros condenados. Alegam, inclusive, terem antecedentes de luta contra a ditadura militar. Como se essa condição lhes desse salvo-conduto para assaltar os cofres públicos do Estado quando chegaram ao poder em 2003. Se assim fosse, todos os que da mesma forma lutamos pela restauração da democracia no Brasil, para a construção do PT e para a eleição de um presidente oriundo das classes populares, deveríamos receber carta-branca para fazer o mesmo, isto é, corromper e ser corrompido, roubar e deixar roubar. O “projeto de poder” nos absolveria dos nossos crimes contra a fazenda pública.
Declaram que foram injustamente condenados, que são inocentes, que não há provas no processo que os incriminem, que o STF julgou sob a pressão “da oposição e da mídia” e que, por isso, foram “linchados”. Dizem que continuarão tentando provar sua inocência, porque “o julgamento foi político”. Dizem que é preciso “controlar” os meios de comunicação, isto é, a mídia que hoje não esteja debaixo do seu tacão.
Tiveram 7 anos para provar isso. Utilizaram de todos os artifícios e recursos protelatórios visando retardar ou até mesmo anular o julgamento. Contrataram em sua defesa escritórios poderosos de advocacia, entre os quais mesmo o comandado pelo ex-ministro de Justiça de Lula que, já na abertura, tentou melar o  julgamento. Obtiveram todo o tempo, recursos e condições de ampla defesa.
Mas as provas nos autos, isto é, “os fatos” ali comprovados, como ressaltou Celso de Mello, decano do STF, conveceram a maioria dos juízes da procedência da denúncia de autoria da Procuradoria Geral da República.
A decisão do Supremo é final. É isso ou o STF se desmoraliza. Aos condenados somente cabe, como aos demais comuns mortais que eles julgam não ser, cumprir sua pena. Ou fugir para o exterior, onde então pedirão, como fez o fugitivo italiano Cesare Battisti, “abrigo político”. Sob alegação de “perseguição política no próprio país”, o Brasil de Dilma Rousseff. É essa a linha de argumentação que pode ser extraída da leitura das “notas” dos caciques do PT.
POR SER JOAQUIM BARBOSA NEGRO SEU TRABALHO NÃO SERVE?
Com isso constróem sua farsa, e seus fiéis seguidores nela acreditam. Sem ligar para o fato de que as provas no processo são fruto de  investigação bem documentada por Joaquim Barbosa. Este, relator do processo, está sendo execrado pelos fanáticos lulo-petistas, também conhecidos como “petralhas”. O rancor contra ele é tamanho que, fosse o Brasil um país racista (obviamente deixou de ser a partir de 1º de janeiro de 2003) os condenados e seus fãs estariam a essa hora destilando piadinhas pela ancestralidade negróide do relator do mensalão.
Não o fazem publicamente, não declaram abertamente, utilizam de subterfúgios retóricos visando escamotear seus preconceitos raciais. Por ter sido um juiz negro, por sapiência técnica e competência jurídica, a colocar de ponta-cabeça a “tolerância” que o STF historicamente demonstrou a criminosos de colarinho branco. Foi um pequeno passo de ruptura, com efeito de uma verdadeira revolução nos procedimentos que agentes públicos devem ter no exercício de suas funções.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Você é liberal ou conservador?



LUIZ FLÁVIO GOMES


Se você ainda tem dúvida sobre se é liberal (visão mais progressista) ou conservador (visão protetiva da ordem social existente), analise os temas controvertidos abaixo e tire essa sua dúvida para sempre.
O uso massivo da repressão penal para (praticamente) todos os males da sociedade encontra aliados nas “tendências conservadoras” e adversários nas “tendências liberais”. O Datafolha (Folha de S. Paulo de 23.09.12, p. A6), com base em escalas internacionais de classificação do nível de conservadorismo por meio da opinião em relação a temas polêmicos, chegou a conclusões bastante esclarecedoras.

Quanto às causas da criminalidade: para as tendências conservadoras a maior causa da criminalidade é a maldade das pessoas (origem pessoal); para as tendências liberais, a maior causa é a falta de oportunidades iguais para todos (causas mais amplas).
Pena de morte: é a melhor punição para indivíduos que cometem crimes graves (conservadores); não cabe à justiça, mesmo que o crime cometido seja grave (liberais).
Posse de armas: arma legalizada deveria ser um direito do cidadão para se defender (conservadores); deve continuar proibida, pois ameaça à vida de outras pessoas (liberais).
Homossexualismo: deve ser desencorajado por toda a sociedade (conservadores); deve ser aceito por toda sociedade (liberais).
Pobreza: boa parte está ligada à preguiça de pessoas que não querem trabalhar (conservadores); boa parte está ligada à falta de oportunidades iguais (liberais).
Migração: pobres que migram acabam criando problemas para a cidade (conservadores); pobres que migram contribuem com o desenvolvimento e a cultura (liberais).
Sindicato: servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores (conservadores); são importantes para defender os interesses dos trabalhadores (liberais).
Adolescentes: adolescentes que cometem crimes devem ser punidos como adultos (conservadores); adolescentes que cometem crimes devem ser reeducados (liberais).
Religião: acreditar em Deus torna as pessoas melhores (conservadores); acreditar em Deus não necessariamente torna uma pessoa melhor (liberais).
Proibição do uso de drogas: sim, porque toda sociedade sofre com as consequências (conservadores); não, pois é o usuário que sofre com as consequências (liberais).
Suas respostas a essa escala de temas polêmicos bem define sua inclinação liberal ou conservadora, que antigamente estava ligada a “ser de esquerda” (liberal) ou “ser de direita” (conservador). Essa diferenciação, quando se tem em mente o uso do poder punitivo repressivo, no entanto, se esfumaçou porque hoje todas as tendências ideológicas usam e abusam do poder punitivo estatal.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Para comemorar a decisão do STF sobre as cotas: lê traz liberdade!

LÊ TRAZ LIBERDADE
 
Gerivaldo Alves Neiva*
Vi esta frase em um adesivo de uma faculdade de letras. A letra “z” era invertida, parecendo um “s” e formava um bonito trocadilho: lê traz liberdade ou letras liberdade.
Esse adesivo me fez lembrar de uma situação que vivi há mais de 20 anos. Na época, eu era advogado de “posseiros” e pequenos proprietários de terra no interior da Bahia. Era o auge da expansão da fronteira agrícola na região oeste e também de muitos conflitos fundiários. Ao contrário de hoje, a luta era para ficar na terra, era defender a terra!
Naquela época, uma grande empresa rural, mais de fachada do que de fato, com recursos da Sudene, estava “grilando” terras no oeste da Bahia. Era tempo da fartura de recursos para o Proálcool e para o bolso de falsos investidores que recebiam o dinheiro público e sumiam no mundo...
Apesar de ser advogado recém-formado, conhecia bem esse problema no interior da Bahia, pois havia feito estágio na Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAG. Aliás, fui um estagiário privilegiado. Aprendi a advogar com Lúcia Lyra, Paulo Torres e Edson Souza. São figuras quase mitológicas para o mundo jurídico-alternativo-popular na Bahia! São quase entidades, orixás baianos!
Pois bem, certo dia atendi no escritório um “posseiro” que estava sendo ameaçado por um preposto dessa temida e poderosa empresa. Conversamos sobre o caso, tomei nota das informações para a ação possessória e lhe apresentei a procuração para assinar. Ele recebeu a caneta que lhe ofereci, olhou o papel, olhou em meus olhos, olhou novamente o papel e me devolveu a caneta.
Era um agricultor típico. Rosto queimado do sol escaldante do oeste baiano e repleto de marcas. Mãos grossas e unhas sem corte e algumas com pequenas marcas de terra. Trazia um chapéu de couro apertado entre as mãos e calçava um bota também de couro. Os olhos ligeiros corriam meu escritório e misturavam medo e esperança.
Seu ato de me devolver a caneta ainda seria explicado, mas pensei em vários motivos. O primeiro e o que eu mais temia é que ele não estava acreditando no “taco” de um advogado com apenas 21 anos de idade para enfrentar aquela dureza. Pensei também que ele não acreditava na saída legal e tentaria resolver a seu modo. Pensei em outras possibilidades, mas não pensei jamais na contundente resposta que ele me daria com a voz embargada e forte ao mesmo tempo:
- Doutor, o senhor me desculpe, mas eu sou analfabetizado.
Fiz uma primeira confusão entre alfabetizado e analfabetizado, mas compreendi em seguida que ele não sabia assinar seu nome na procuração. Havia naquela expressão, no entanto, muito mais do que o significado de ser analfabeto. Não era mais uma simples condição de não saber assinar o nome, mas de ter se tornado analfabeto, aliás, de ter sido a conseqüência de um processo de abandono pelo poder público, de ter sido esquecido na zona rural, de não ter sido contado como gente...
Passado o constrangimento, tentei lhe explicar que seria necessário fazer uma procuração pública no cartório, que não se incomodasse com a situação de não saber assinar o nome e também lhe contei aquela velha piada do doutor que pede ao pescador para lhe atravessar o rio de canoa. No meio do rio, o doutor pergunta se o pescador sabe ler e ele responde que não. O doutor, então, responde que o pescador perdeu metade da vida. Percebendo o perigo iminente, o pescador pergunta ao doutor se ele sabe nadar e a resposta também é negativa. O pescador, então, observa que o doutor vai perder a vida inteira, pois a canoa vai afundar.
Ele riu meio sem graça, mas se animou um pouco e concordou que os saberes são diferentes, observando que um advogado sabe sobre a Justiça e um homem da roça sabe sobre a natureza, que é o seu mundo.
Pensou um pouco e começou a falar com sabedoria: meu doutor, eu sei se o ano vai ser bom de chuva e sei até o mês que vai chover; conheço o canto de todos os pássaros e sei o que eles conversam; conheço a pisada da onça, do caititu, da raposa e sei onde mora cada um desses bichos; sei todas as horas do dia, desde a madrugada, de acordo com o cantar do galo ou de outros avisos da natureza; conheço todos os paus, folhas e raízes boas prá remédio; na natureza, doutor, até as formigas têm o que dizer... Meu doutor advogado, de natureza eu também sou doutor!
Se tivesse deixado, ele teria conversado horas sobre seus saberes, mas tinha outros clientes para atender ainda naquela calorenta manhã. Antes de sair, ele suspirou fundo e me disse: olhe doutor, esse todo meu saber só me serve na roça. Aqui na cidade, como não sei ler, ando tateando como um cego. É assim mesmo, quem não sabe ler é como um cego.
Mais de 20 anos se passaram...
Pois bem, hoje sou Juiz de Direito e não preciso mais de procuração do cliente. Hoje tenho jurisdicionados. (Não gosto desse nome, pois transmite uma idéia de reinado e súditos.) O certo, no entanto, é que ou Juiz de Direito e continuo tentando ler e ver o mundo em que vivo.
E vejo, por exemplo, crianças concluindo o primeiro ciclo do ensino fundamental sem saber ler ou escrever, sendo aprovados automaticamente. Algumas não podem ser classificadas sequer como “analfabetos funcionais.” Ficam esperando apenas a hora da merenda, mas depois se cansam da mesmice da escola, entram para a estatística de evasão escolar e vão para as ruas.
Hoje, depois de 20 anos, interrogo jovens de 20 anos acusados de pequenos furtos para comprar pedras de “crack” e quando peço sua assinatura no termo do interrogatório, vejo a caneta sendo devolvida e trocada pela esponja do carimbo.
Por coincidência, estamos no vigésimo aniversário da Constituição de 1988, onde a educação é direito de todos e dever do Estado, mas o Estado Brasileiro continua“analfabetizando” suas crianças e conduzindo seus jovens ao nada, ao descrédito total, à desesperança, cegos, errantes pelo mundo!
Alguns constitucionalistas, no entanto, dizem que nossa Carta Magna é maravilhosa, pois já nos garantiu o mais longo período de estabilidade política.
A cegueira deles é outra...
* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
Conceição do Coité, 23 de novembro de 2008, ano XX da Constituição Federal de 1988.

DIA DO TRABALHO OU DIA DO TRABALHADOR?

Murilo Oliveira, Juiz do Trabalho(5ª Região) e Professor da UFBA.
No dia internacional do trabalho, celebram-se as lutas operárias em defesa da redução da jornada de trabalho. Lembrar do primeiro de maio serve para que não se esqueça o ocorrido em 1º de maio de 1886 em Chicago nos Estados Unidos. Nestas manifestações, precisamente durante o confronto com a polícia local, ocorreram mortes quando uma bomba explodiu. Por considerar os organizadores das passeatas os responsáveis pelas mortes, os dirigentes sindicais foram condenados pela Justiça à morte na forca. É esse o grosso resumo dos fatos que explicam historicamente o primeiro de maio (veja a história mais detalhada em http://www.culturabrasil.pro.br/diadotrabalho ), justificando o epíteto de “os mártires de maio”.
A despeito desta história de luta, morte e injustiça de trabalhadores, o primeiro de maio é designado como “dia do trabalho”. Este título oficialesco representa uma sutil prevalência da ação (trabalho), logicamente em detrimento do sujeito que realiza esta ação (trabalhador). No discurso oficial, celebra-se o trabalho humano na sua acepção genérica e não a luta dos trabalhadores que pagaram com sangue a obtenção da jornada de oito horas. Suprime-se o trabalhador (e sua dor), restando o trabalho, na perspectiva positivista mais neutra possível.
Esta questão de nomenclatura não pode ser tida como um problema pequeno. Isto porque algumas mudanças de nomes, como esta, trazem um conteúdo ideológico de esvaziamento do sentido histórico do termo. Falar hoje em dia do trabalho pouco remete a luta pela redução da jornada de trabalho e as demais lutas dos trabalhadores. Comemorar o primeiro de maio tende a significar somente a exaltação de toda a pessoa que trabalha, que pode ser tanto um empregador que administra sua empresa, um trabalhador autônomo, ou um empregado. Assim, consegue-se, com uma pequena mudança de nome, desfocar as lutas dos trabalhadores, consagradas em parte no Direito do Trabalho.
Celebra-se, enfim, neste dia uma série de conquistas do Direito do Trabalho, muitas atendendo parcialmente aos reclames dos trabalhadores. Rememora-se que estas lutas tiveram um preço histórico grande para serem reconhecidas pelo Estado como direitos trabalhistas, tal como foi a morte de mais cento e trinta mulheres grevistas queimadas numa fábrica de Nova York em 1857, data posteriormente reconhecida como dia internacional da mulher. Mais apropriado, então, é referir-se ao dia de hoje como “dia internacional do trabalhador”, em memória dos mártires de Chicago e em respeito à história das lutas dos trabalhadores e trabalhadoras.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sobre as cotas raciais

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu ontem, por unanimidade, que o sistema de cotas raciais em universidades é constitucional.
Eu, particularmente, também sou a favor.
É sabido que as escolas públicas do ensino primário e secundário não tendem a proporcionar uma base educacional sólida que permita continuar os estudos em nível superior.  E os chamados “cursinhos” para o vestibular são caríssimos.
A maioria dos alunos que conseguem vagas  nas mais prestigiadas universidades públicas vêm da classe média ou da alta e estudou em escolas particulares.
Cerca de 20 universidades federais brasileiras já adotaram as ações afirmativas por sua própria iniciativa e o desempenho acadêmico dos alunos admitidos pelo sistema de cotas é tão bom quanto ou melhor do que a do resto dos estudantes.
Os resultados são bastante positivos em termos de justiça social, em um país cuja população negra e indígena têm dificuldade em ter acesso a até mesmo seus direitos mais básicos, como é fato neste País. Basta ver que apenas 6,1 por cento de negros entre as idades de 18 e 24 no Brasil estudam em  universidades.
É fato que se essas políticas compensatórias não forem adotadas, milhões de estudantes brasileiros não terão chance de entrar em uma universidade de boa qualidade.
Quem fala que as cotas são uma forma de “racismo às avessas” não tem contato com a realidade brasileira e nunca  sentiu preconceito racial na sua vida quotidiana.
Entendo que ao lado do sistema de quotas,  o governo adote medidas paralelas com vistas à melhoria da educação escolar pública primária e secundária.
Enfim, concordo com o professor José Vicente, diretor da universidade Unipalmares, em São Paulo, que admitiu que o sistema de quotas pode não ser a melhor ferramenta “Mas ela é a única que temos, e enquanto não temos qualquer outro mecanismo, temos que continuar a usá-los. Se não, vamos passar de 500 anos à procura de outro instrumento para resolver o problema”.

Parabens, Brasil.

Postado em 27 de abril de 2012 // Cotidiano

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Conselheiro do CNJ reconhece dificuldade em punir ricos e poderosos

“É difícil punir as pessoas com bom poder aquisitivo”, pontuou o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Gilberto Valente Martins durante a palestra sobre “O Papel do Judiciário na Improbidade Administrativa”, nesta terça-feira (17), no Salão Nobre do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES)
Para ele, as pessoas com poder aquisitivo e político conseguem criar empecilhos contra magistrados e procuradores e, ainda, possuem bons advogados, que prolongam o tempo do processo até as últimas instâncias. “Há, muitas vezes, obstrução na Justiça. Eu mesmo ainda estou sofrendo processo na tentativa de desarticular e evitar sentença de improbidade administrativa. Essas coisas que vêm acontecendo contra membros do Ministério Público e magistrados desestimula a condenação de ímprobos. É uma preocupação permanente e inibe o julgamento”, afirmou Martins.

O conselheiro ainda defende a mudança no sistema de computar a produtividade dos magistrados.

Hoje, um processo de execução fiscal tem o mesmo peso que o de uma ação civil pública impetrada contra agentes públicos, mas é menos complexa. “Esses valores precisam ser revistos para motivar os magistrados a analisarem os casos de mais complexidades”, sugeriu. Cadastro Um Cadastro Nacional de Improbidade Administrativa foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça e concentra informações de todos os casos transitados e julgados em 14 estados que já aderiram ao sistema.

No mês de agosto, a Lei nº 8429, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa, completa 20 anos de sanção. Segundo o conselheiro, o histórico de casos de improbidade administrativa não é só um problema brasileiro, mas de todos os países de colonização latina. “O Brasil está na frente no julgamento de ações dessa área que muitos países, como Itália, França e Portugal”, pontuou.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os bastidores do mais importante julgamento do STF

Na curva de acesso ao STF, o taxista dá seu veredicto: “A senhora não vai conseguir entrar vestida desse jeito, não”. O “desse jeito” era um vestido com mangas até o meio do braço e comprimento até a patela, preto como azeviche, que insinuava a proeminência das minhas clavículas. “Nem com este xale?”, inquiri, enrolando uma echarpe no ombro. “Sei não, já deixei muita mulher aqui que mostrava o pescoço e ficou na porta sem solução”, afirmou, assinando o recibo da corrida. “Mas Deus é mais, a senhora há de conseguir.”

A fila exibia de tudo, cobertos e descobertos, e quem não parecia sóbrio o suficiente para peitar o cerimonial arrumou um casaco ou voltou pra casa. Os autorizados passamos por um raio X ao lado da entrada central, bloqueada por um busto da Justiça esculpido por Alfredo Ceschiatti. Já no plenário, e apesar dos 15 minutos de atraso, nem sombra dos ministros. Mas um homem de toga circulava na frente das câmeras da TV Justiça. Era Luciano Alencar da Cunha, representante da Associação Jurídic0-Espírita de Minas Gerais, que pleiteava dar a palavra pró-vida. Queria concorrer com Luís Roberto Barroso, defensor da ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que motivara o julgamento da interrupção da gestação de fetos sem cérebro. Barroso tinha direito à sustentação oral do que emergia como a mais importante decisão da história da Corte, nas palavras do presidente Cezar Peluso, que aos 30 minutos do primeiro tempo adentrou o recinto depois que uma sirene instou a plateia a ficar de pé.

Atrás dele vieram o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o escrivão Luiz Tomimatsu e mais nove ministros, todos seguidos pelos seus respectivos “capinhas”, meirinhos que vieram ao mundo para servir. Paramentados com minipelerines pretas, eles ajudam os ministros a vestir as togas, trazem-lhes o café, levam a xícara usada, carregam a papelada do processo, ajeitam o laptop, ouvem e dizem coisas ao pé do ouvido, num vaivém ao mesmo tempo esvoaçante e silencioso. Nesse primeiro momento, puxam as cadeiras dos ministros como garçons. Um capinha está de folga, o de Dias Toffoli, que se declarou impedido de votar neste julgamento por ter participado do processo quando advogado geral da União e por ter emitido parecer a favor da legalidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo. O escrivão anuncia quase inaudivelmente o que será julgado – a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54 – e o presidente Cezar Peluso resmunga o nome de Luís Roberto Barroso, que então se posiciona de frente para o tablado e de costas para a audiência, onde uma legião de celulares, iPads, iPods, MacBooks, Dells e singelos post its passa a agir na surdina.

Barroso centra sua sustentação “na tortura psicológica que é sair da maternidade com um pequeno caixão e ainda secar o leite produzido para ninguém”. Afirma que estamos atrasados, “a descriminalização desse caso é a posição de todos os países democráticos do mundo” e enumera Canadá, EUA, França, Espanha, Japão. Também insiste que a interrupção terapêutica de gestação de feto anencéfalo não é aborto porque o cérebro do feto nem sequer começa a funcionar. “Então não há vida em sentido técnico e jurídico. De aborto não se trata.”
Por aí segue sua argumentação, seguida da do procurador-geral da República em linha semelhante, que enfatizou a confortável certeza médica sobre o diagnóstico de anencefalia e que a interrupção desse tipo de parto é absolutamente atípica. Optou Roberto Gurgel por sustentar o parecer que defende a liberação do aborto de anencéfalos, embora lembrando que o assunto é tão polêmico que sua própria instituição chegou, em momentos díspares, a emitir dois pareceres contrários.

Peluso rezinga então o nome do relator Marco Aurélio, que começa o que se estenderia por quase duas horas e meia de voto favorável à permissão do aborto de anencéfalos, sem que Peluso lhe dirigisse o olhar. Nesse meio tempo Joaquim Barbosa já havia dado uma canseira no seu capinha. Ficara de pé apoiado no espaldar da poltrona, sentara numa cadeira ergonômica de encosto azul, voltara a ficar de pé com uma das solas sobre um suporte de madeira, sentara na poltrona tradicional e então saíra de cena, talvez para tentar aliviar no gabinete sua radiculite do plexo lombar.
O carioca Marco Aurélio centrou fogo na laicidade do Estado. “Concepções religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada” – apesar de a expressão “Deus seja louvado” vir impressa em todas as notas de dinheiro do nosso país, até nas mais recentes, lembra ele –, o que levou alguns a abrir a carteira para checar a veracidade do fato. Enquanto falava do avanço da medicina, “avanço que me permite saber que serei avô de Rafaela”, a menina Vitória de Cristo chega no colo da mãe, Joana Croxato. Vitória, com 2 anos e 6 meses, tem acrania. O diagnóstico foi dado na 12ª semana de gravidez e seus pais resolveram levar a gestação a termo. Os três lá estavam a convite do Movimento Brasil sem Aborto, sentaram-se de frente para os ministros e Joana ficou acariciando a cabeça da filha, cuja calota coberta de cabelos foi fechada por cirurgia.

O ministro Ayres Britto fita longamente a criança, a ministra Rosa Weber também. E, seguindo a ordem dos mais novos para os decanos a partir do relator, ela, a gaúcha Rosa, passa a explanar seu voto dizendo que fora visitada por Vitória de Cristo e sua mãe no dia anterior. A ministra, com certo nervosismo, passa a questionar a falácia naturalista e os paradigmas científicos, menciona Plutão, que foi planeta e deixou de sê-lo, termina dizendo que o feto anencéfalo não constitui vida segundo o direito jurídico e vira motivo de chacota em tweets, que dizem que Rosa foi a Plutão e voltou.
O próximo na lista seria Luiz Fux, o ministro de vasta cabeleireira que alguns juram ser peruca e cujo voto de minerva escalpelou a Lei da Ficha Limpa em 2010. Mas Joaquim Barbosa, num raro momento de presença, com um lenço branco à mão, atropelou a ordem da antiguidade e deu seu voto, curto e grosso, dizendo que “seria contrassenso chancelar a liberdade no caso de aborto resultante de estupro e vedar no casos de malformação fetal gravíssima”. Saiu para não mais voltar – e votar.

Fux, preocupado em afirmar que o direito ao aborto no caso de anencéfalo era isso, um direito, e não uma obrigação de abortar, foi dos que mais citaram artigos científicos. Os ministros, aliás, receberam uma pasta de referências da biblioteca do Supremo baseada nas seguintes palavras-chave: aborto eugênico, aborto, anencefalia, biodireito, bioética, infanticídio e nascituro. Estavam ali mencionadas 110 obras, 225 periódicos, 34 artigos de jornais, 6 textos na base de dados HeinOnline, 8 na Scielo, 3 projetos de lei e acórdãos de jurisprudência. A maioria mencionou as audiências públicas promovidas pelo STF sobre o assunto em 2008, quando foram ouvidas 25 instituições, além de ministros de Estado e cientistas. Alguns magistrados rasgaram o verbo em italiano, outros em inglês, alguns em alemão, quase todos em latim. E usaram poetas, como Chico. Cármen Lúcia e Ayres Britto praticamente recitaram juntos “A saudade é o revés de um parto / é arrumar um quarto / de um filho que já morreu”.

Procuradora-geral no governo Itamar Franco, Cármen Lúcia foi lapidar: “O útero é o primeiro berço de todo ser humano. Quando o berço se transforma em pequeno esquife, a vida se entorta”. Acrescentou no seu voto um personagem até então não mencionado, o pai da criança, e por isso foi o único parecer que emocionou Rosivaldo, personagem do documentário Uma História Severina, da antropóloga Debora Diniz e da jornalista Eliane Brum. Rosivaldo é marido de Severina e ambos travaram uma batalha de sete meses para abortar um feto anencéfalo por liminar em 2005. Estavam os dois e o único filho na plateia, vindos de Chã Grande, no brejo pernambucano, trazidos pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Às 18h, Ricardo Lewandowski toma o microfone para fechar o primeiro dia de votação com voto contrário aos anteriores. O carioca bate o martelo em que “não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem”. Essa atribuição, diz ele, caberia ao Congresso, “que nunca fez parecer sobre incluir o feto anencéfalo entre os abortos permitidos”. Peluso, que dessa vez deixara o computador de lado para prestar evidente atenção ao voto, encerrou os trabalhos e anunciou a segunda rodada no dia seguinte, a partir das 14h.

Antes de se retirar pelos fundos em direção ao gabinete, Marco Aurélio desce do tablado para dar entrevistas e cumprimentar os plantadores de brócolis Rosivaldo e Severina. Aproveita e comenta o que já corria na rede: “Acabaram de representar contra mim!” Falava da abertura de processo por crime de responsabilidade requerida por parlamentares das bancadas evangélica e católica do Congresso a Sarney alegando que Marco Aurélio emitira juízo de valor em entrevistas dadas ao SBT e à Veja, em 2008, sobre o aborto de fetos anencéfalos. Teria, com isso, antecipado seu voto no julgamento. “Se precisar de advogado, estou aqui”, prontificou-se Luís Roberto Barroso, também defensor de Cesare Battisti.
Casa de Suplicação. Bem menos concorrido que no primeiro dia, o STF, antiga Casa de Suplicação, mostrou-se esvaziado do lado de fora. A vigília de terça para quarta não se repetiu de quarta para quinta e um buzinaço econômico pela causa dos poupadores acabou embalando o voto de Ayres Britto. Sua frase que mais reverberou foi: “Se todo aborto é uma interrupção de gravidez, nem toda interrupção de gravidez é um aborto”. Mas ele também se saiu com “O grau da civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da mulher” e “A natureza também se destrambelha”, aí copiando Tobias Barreto, uma de suas fontes alheias ao calhamaço da biblioteca. O sergipano Ayres Britto fala muita coisa de pronto e, por isso, não se conseguia a íntegra do seu discurso na internet.

Um desses repentes foi um aparte a Gilmar Mendes, quando este afirmou, coçando o gogó, que “as entidades religiosas são quase que colocadas no banco dos réus, como se estivessem a fazer algo indevido”. Gilmar disse que os espíritas deveriam participar do debate, no que foi aplaudido visualmente pelo representante da Associação Jurídico-Espírita de Minas Gerais, e que “é preciso ter muito cuidado com faniquitos anticlericais”, porque “daqui a pouco nós talvez tenhamos a supressão do Natal, a revisão do calendário gregoriano ou a demolição do Cristo Redentor”. Alguns da plateia riram, mas silenciaram com o aparte de Britto: “O Cristo in natura talvez valha mais que o Cristo pasteurizado”.

Gilmar não votou contra o direito de aborto de anencéfalo, mas a favor, por entender não parecer tolerável que se imponha à mulher tamanho ônus na falta de um quadro legal para resolver a questão. Sua ressalva disse respeito ao atendimento médico dessa mulher, dado que seu vizinho de mesa, Celso de Mello, também destacou. Celso, avesso a computadores, tinha umas 30 pastas de papel in natura atrás de si com faixas escritas STF amarrando-as todas.

Na cabeceira da Corte, em seu provável último julgamento antes de entregar o posto a Ayres Britto no Dia do Índio, Cezar Peluso clarificou uma posição pré-sabida, a de que seria voto contra nesse julgamento. Por diferentes motivos: porque “o feto é sujeito de direito, e não coisa nem objeto de direito alheio”, porque “não é possível detectar o grau de anencefalia e outras deformidades graves”, porque a gravidez de anencéfalo “não é sofrimento injusto, como a gravidez fruto do estupro”, porque “é assombrosa a semelhança entre aborto de anencéfalo e prática eugênica”. Atropelando algumas últimas letras, classificou a situação como “lamentável, não podendo sequer encerrar dizendo que a douta maioria tinha razão”.

Ainda se seguiria uma fase tensa, com os ministros discutindo se seria o caso de incluir regras para a implementação da decisão, como um “desde que a mulher seja atendida por três médicos, quatro até”, quando o relator afirmou que a maioria já havia decidido pela liberação da interrupção da gravidez de feto sem cérebro. Assim apenas. A Peluso restou ler o acórdão. Não sem antes ouvir os berros de Maria Angélica de Oliveira, autointitulada participante de uma associação de espíritas, que, sentada na primeira fila, chamava os defensores da interrupção de assassinos. Altivos, em ordem regimental, lá se foram os dez com seus capinhas esvoaçantes a tiracolo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O FIM DO VISTO OBRIGATÓRIO

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
12/4/2012

Há muito tempo o Brasil não esteve tão mais próximo dos Estados Unidos como neste encontro da presidente Dilma Rousseff com o presidente Barack Obama. Formalmente – de acordo com os comunicados diplomáticos sempre muito cautelosos na definição de agendas –, seria apenas uma retribuição à visita que o dirigente norte-americano fez ao Brasil. Na realidade, porém, essa viagem representa um avanço significativo em todas as áreas. Talvez a menos expressiva tenha sido a pauta comercial, desde que são muitas e complexas as pendências, quase sempre ligadas a protecionismos de um lado e de outro, coisas muito naturais no mercado globalizado e assim mesmo progressivamente atenuadas.
Entretanto, o mais apropriado balanço da viagem está em acentuar as conquistas pontuais para um lado e outro. De nosso lado, a atenção que está sendo dada à qualificação de estudantes brasileiros nos Estados Unidos. As nações que apresentaram maior desenvolvimento nas últimas décadas – como China e Coreia do Sul – percorreram os mesmos caminhos que a presidente Dilma Rousseff acaba de percorrer, particularmente a Universidade de Harvard e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugares onde é possível encontrar a capacitação que teve – por exemplo – o pernambucano Fábio Thiers, com Ph.D. e dois pós-doutorados nesses dois grandes centros de pesquisas, entrando na relação de profissionais altamente qualificados, dentro mesmo dos Estados Unidos.
De parte do presidente Barack Obama, não poderia ser melhor a sinalização de que o Brasil tem hoje o status de um País preferencial nas relações com os Estados Unidos. Torna-se mais fácil tirar o visto de entrada, que depois do 11 de Setembro havia se transformado numa tortura e a razão para essa atenção generosa é muito visível na onda de brasileiros que despejam bilhões de dólares em Miami e outros centros de consumo. Uma relação de tal forma desejável que a presidente Dilma Rousseff volta de sua rápida viagem com a expectativa, na bagagem, de incluir o Brasil no Programa de Isenção de Vistos, um privilégio hoje reduzido a 36 países de todo o mundo. Isso significa que caminhamos para entrar nessa relação e atribuirmos o princípio da reciprocidade, recebendo os cidadãos norte-americanos sem a exigência do visto.
Se mais não se buscar, podemos admitir, resumidamente, que a viagem de nossa presidente aos Estados Unidos foi muito proveitosa e representou um processo de distensão desejável, sem submissão. O Brasil é hoje o segundo País de maior expressão na geopolítica das Américas, pelo peso de nossa economia, pelo lugar que ocupamos entre os emergentes – o clube dos Brics – e porque já somos capazes de falar e sermos ouvidos, sem que se anteponha às nossas posições qualquer vício ideológico. Apenas a manifestação da nossa soberania. E o que mais emblematicamente poderá representar essa nova relação de nosso País com a nação mais poderosa e, ainda, mais rica do mundo, será, exatamente, o fim do visto obrigatório.

DIREITO DE MÃE

ZERO HORA (RS)
12/4/2012

O Supremo Tribunal Federal iniciou ontem e deve concluir hoje o julgamento que tende a assegurar às mulheres brasileiras o direito de interromper a própria gravidez quando a ciência médica constatar que o feto tem anencefalia, uma grave e irreversível malformação caracterizada pela falta parcial ou total do encéfalo e da caixa craniana. É consenso entre os especialistas que seres nestas condições não têm qualquer chance de vida extrauterina. A prevalecer a tendência manifestada ontem pela maioria dos ministros, o tribunal simplesmente concederá às mulheres uma prerrogativa que nunca lhes deveria ter sido suprimida: a de escolher se querem continuar gestando um ser que jamais se desenvolverá ou se preferem evitar o sofrimento e os riscos de uma gestação inconsequente no seu propósito mais sublime, que é o de dar vida a outra pessoa.

Trata-se, acima de tudo, de um avanço humanitário que ainda precisa ser passado para a legislação, com o objetivo de atualizá-la e compatibilizá-la com os novos tempos. Quando o Código Penal Brasileiro foi elaborado, a medicina não dispunha de tecnologia e conhecimento para diagnosticar a anencefalia de um feto no ventre da mãe. Era lógico, portanto, que os casos de aborto legal se restringissem a gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a gestante. Agora, porém, exames de ultrassom e ressonância magnética, feitos entre a terceira e a quarta semanas de gestação, identificam com total certeza a existência da anomalia, possibilitando uma interrupção que preserva a mulher de riscos físicos e do desgaste emocional de gerar um natimorto.

Compreende-se que grupos religiosos e pessoas apegadas a rígidos padrões morais considerem que a vida é inviolável, mesmo quando sentenciada à extinção em, no máximo, algumas horas. Merece respeito até mesmo o argumento ilógico de que o sofrimento (no caso, da mãe que jamais conviverá com o filho) engrandece as pessoas. Se for mesmo confirmada, a decisão do Supremo em nada alterará este aspecto: as mulheres que assim o desejarem poderão levar a gestação até o fim. A Suprema Corte apenas está garantindo a elas o direito de exercer o livre-arbítrio e de fazer a escolha que lhes parecer mais adequada. Tirar-lhes esta autonomia é que representava um arbítrio.

Ainda que todos nasçamos para morrer, é desumano e antidemocrático obrigar uma pessoa a gerar “algo que jamais será alguém”, como alegou o ministro Carlos Ayres Britto na antecipação de seu voto, utilizando uma imagem que choca mas que também toca no ponto essencial. Ninguém mais, a não ser a própria gestante de posse de informações confiáveis sobre a anomalia que carrega, pode ter o direito de tomar uma decisão tão íntima e tão determinante para a sua vida. É um direito único e inalienável de mãe.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A arte da percepção distorcida

Digamos que na visão do STJ, meninas de 12 anos têm idade e maturidade para escolher a profissão de prostituta. Cáspite! Essa nem é a idade para ser aprendiz, 14 anos. Ainda mais que a bendita constituição veda, para menores de 18, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre (CF 7 XXXIII).
Ora, ora, o trabalho de prostitutas mirins quase sempre é noturno, perigoso e insalubre.
Imagine a cena: Uma ministra sai do teatro em direção ao carro, e observa, na penumbra, um turista sexual se enroscando sobre uma pirralha. De soslaio, calcula que a guria não deve ter 14 anos: pouco corpo, pouco seio, pouca bunda. Mentaliza o dispositivo penal e, de si para si, conclui, balbuciando, horrorizada: Ó meu Deus, é um estupro! Num átimo, aciona a polícia, que estava por perto, e chega, em segundos. Não pode sair, é testemunha. Aproxima-se da abordagem policial, e ouve quando a menina diz “ interar doze, mêx que vem”.
O cioso agente da lei, instigado pela ministra, indaga o que a garota faz ali, naquela hora. “Aqui é meu ponto, né; diz pra pirua aí que eu trabalhano, né; esse é meu criente, e ele tem grana; vai vê se tô na isquina.
Percebendo que se tratava de uma relação de trabalho, apesar de noturno, perigoso e insalubre, a ministra se afasta, com a consciência aliviada, pois, se era trabalho, não era um estupro. Antes de chegar ao carro, ainda ouviu a guria, em voz alta, responder ao policial: “Faz tempo; eu não tinha dez anos”.
Ao deitar, a ministra perdeu o sono. Quase não dorme, agulhada por uma forte inquietação: na pressa, esquecera de ver se a pivete tinha carteira profissional.

Surrupiado d‘O Parquet

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Fiasco na Prova Prática da OAB – 2012


Com alguma frequência recebo pedidos para discussão e estudo de casos aqui no blog, e por falta de tempo – ou esquecimento mesmo - findo por não fazê-lo. Mas hoje vejo uma excelente oportunidade de dar inicio às discussões.
O caso trata da prova da OAB desse ano onde o colega advogado Guilherme Ferreira faz algumas observações, críticas quanto à solução do caso.
Estejam livres para comentar.

PEÇA PRÁTICO-PROFISSIONAL
No dia 10 de março de 2011, após ingerir um litro de vinho na sede de sua fazenda, José Alves pegou seu automóvel e passou a conduzi-lo ao longo da estrada que tangencia sua propriedade rural. Após percorrer cerca de dois quilômetros na estrada absolutamente deserta, José Alves foi surpreendido por uma equipe da Polícia Militar que lá estava a fim de procurar um indivíduo foragido do presídio da localidade. Abordado pelos policiais, José Alves saiu de seu veículo trôpego e exalando forte odor de álcool, oportunidade em que, de maneira incisiva, os policiais lhe compeliram a realizar um teste de alcoolemia em aparelho de ar alveolar. Realizado o teste, foi constatado que José Alves tinha concentração de álcool de um miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões, razão pela qual os policiais o conduziram à Unidade de Polícia Judiciária, onde foi lavrado Auto de Prisão em Flagrante pela prática do crime previsto no artigo 306 da Lei 9.503/1997, c/c artigo 2º, inciso II, do Decreto 6.488/2008, sendo-lhe negado no referido Auto de Prisão em Flagrante o direito de entrevistar-se com seus advogados ou com seus familiares.
Dois dias após a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, em razão de José Alves ter permanecido encarcerado na Delegacia de Polícia, você é procurado pela família do preso, sob protestos de que não conseguiam vê-lo e de que o delegado não comunicara o fato ao juízo competente, tampouco à Defensoria Pública.
Com base somente nas informações de que dispõe e nas que podem ser inferidas pelo caso concreto acima, na qualidade de advogado de José Alves, redija a peça cabível, exclusiva de advogado, no que tange à liberdade de seu cliente, questionando, em juízo, eventuais ilegalidades praticadas pela Autoridade Policial, alegando para tanto toda a matéria de direito pertinente ao caso.
(Valor: 5,0)
 
A peça prático-profissional do VI exame unificado da OAB, a meu ver, foi um verdadeiro fiasco. Justifico:
Da análise da questão, percebe-se, in locu, que o mais prudente seria o manuseio do habeas corpus, em razão das diversas ilegalidades no auto de prisão em flagrante, tais como: a violação ao direito de não produzir provas contra si mesmo (Nemo tenetur se detegere); a não comunicação ao Ministério Público (Lei 12.403/2011); a não comunicação à Defensoria Pública, ao Juiz e à família do preso (artigo 306, caput e parágrafo único CPP).
Acontece que a banca exigiu peça cabível “exclusiva de Advogado”, no que tange à liberdade. Ora, como é cediço, o habeas corpus é uma ação constitucional e que pode ser utilizado por qualquer pessoa, inclusive pelo Ministério Público. Assim, resta prejudicado, no caso concreto, o manuseio do habeas corpus, haja vista não ser peça exclusiva de Advogado.
Só restaria, então, o pedido de relaxamento da prisão em flagrante.
Contudo, esquece o examinador que, segundo a questão, a prisão sequer fora comunicada ao Juiz, portanto, pergunta-se: como requer relaxamento da prisão em flagrante sem a devida comunicação? Será, então, que o Advogado apresentaria uma simples petição ao Juiz e este deveria acreditar tão somente nas alegações do Advogado? Caso não acreditasse, deveria pedir informações? Em tal procedimento há possibilidade de pedido de informações? Certamente que não.
Mas não é só: qual juiz deveria ser comunicado? Seria o Plantonista? Seria o Juiz Criminal da Vara de Trânsito? E, por acaso, existiria essa Vara especializada na comarca?
A meu ver, com o devido respeito, uma prova muito mal elaborada.
E mais: esquece, ainda, o examinador, que o Código de Processo Penal foi alterado pela Lei 12.403/2011.
Vejamos, portanto, a nova sistemática:
Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: 
I – relaxar a prisão ilegal; ou 
II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou 
III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. 
Ora, o relaxamento da prisão ilegal deve ser feito de ofício pelo Juiz e, caso entenda que a prisão esteja legal, deverá homologá-la e decretar a prisão preventiva. Assim, como é cediço, prisão preventiva se revoga e não se relaxa.
Decerto a Constituição Federal afirma que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente” (e essa é uma verdade que não se pode olvidar). Portanto, como se nota, a Constituição não restringe tal possibilidade somente ao pedido de relaxamento de prisão. Contudo, segundo a praxe forense, repise-se, prisão preventiva se REVOGA e não se relaxa.
Arisca-se dizer, sem receio de equívoco, que acabou qualquer possibilidade de pedido de relaxamento de prisão em flagrante. Salvo se, antes mesmo do juízo de legalidade da prisão pelo Juiz, o Advogado atravessar um pedido de relaxamento da prisão ilegal (como efetivamente acontece em muitos casos). Ainda assim, deveria existir, no mínimo, distribuição dos autos à uma das Varas Criminais, o que não se nota no referido exame da ordem.
Feitas essas considerações, a Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Amazonas presta solidariedade aos candidatos prejudicados com a prova, e se põe à disposição para qualquer orientação.

 Guilherme Torres Ferreira
Advogado e Conselheiro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Amazonas

JUIZADOS QUE NÃO JULGAM

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
2/4/2012

“Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, uma das mais célebres frases do patrono dos advogados brasileiros, Rui Barbosa, deveria ser o emblema de todos os magistrados e todos os tribunais brasileiros. Mas se ela não está presente como inspiradora para mudar o que aí está, é reconhecida pelo Judiciário, que antepõe às suas dificuldades a ausência dos meios apropriados para enfrentar a monumental carga de demandas a que é submetido. Por isso foi criado em novembro de 1984 o Juizado de Pequenas Causas, transformado pela Constituição Federal – em decorrência do seu artigo 98 – em Juizado Especial Cível e Criminal.
O grande problema é que, criado para acelerar a prestação jurisdicional, esse instrumento do Judiciário vem sendo inteiramente contaminado pela velha doença da morosidade, da lentidão, da “injustiça qualificada e manifesta”. Reportagem recente deste jornal mostra como os Juizados Especiais no Grande Recife estão abarrotados de processos, fazendo com que um ano de espera para a realização de uma audiência seja considerado “tolerável”. A assimilação dessa deformação leva ao acomodamento mas, também, à descrença, à revolta e à busca de soluções extrajudiciais, nem sempre razoáveis mas quase sempre com prejuízo para as partes.
Uma das explicações possíveis para esse retrocesso do que parecia ser a solução ideal, inspirada em modelos exitosos em outros países, é a de que muitas pretensões que antes não eram submetidas à Justiça agora deságuam nos Juizados Especiais, aonde são levadas as causadas de menor valor. Como está acontecendo nos litígios de consumidores que se sentem lesados e que correm atrás de compensações. Significa dizer que o que antes era tratado como “caso perdido” ou até encarado como um caso de polícia e não de Justiça agora é submetido ao ritual do Judiciário, sabidamente demorado pelas formalidades e pelo volume.
Aí é onde entram considerações mais amplas, igualmente complexas mas as únicas possíveis para o enfrentamento do problema que contribui para fazer do nosso País uma nação sujeita a um ordenamento jurídico paquidérmico, atrasado e responsável em grande parte pelo nosso atraso. Porque não basta apregoar que somos a sétima ou oitava economia do mundo, que fazemos parte dos países emergentes, que fazemos cair barreiras extremamente rigorosas para entrar em um país como os Estados Unidos porque temos maior poder de consumo.
É preciso a esse cenário virtuoso acrescentar alguns outros, entre os quais, a lentidão com que assimilamos os avanços tecnológicos e mantemos, ainda, estruturas arcaicas, grande parte delas abrigadas no Judiciário. Essa deformação, aliás, não é “privilégio” do Judiciário. A burocracia em que se movem os outros Poderes e seus órgãos é responsável pelas dificuldades de modernização do País, pela nossa falta de competitividade. Uma doença tão grave que até um Ministério da Desburocratização criado para enfrentá-la terminou sendo vítima dela.

O PAPA EM CUBA

FOLHA DE S. PAULO
2/4/2012

Encontro de Bento 16 com Raúl Castro não sinaliza mudança profunda no regime ditatorial, mas uma convergência de interesses

Diferenças simbólicas e históricas distinguem a viagem do papa João Paulo 2º a Cuba, em 1998, da visita de Bento 16 à ilha.
O pontífice polonês sempre encarnou, pessoalmente, um símbolo de mudança. Fez carreira eclesiástica sob a vigilância do partido único em seu país e, mais tarde, foi um protagonista no vitorioso esforço para derrotar o comunismo na Europa.
Sua presença em Cuba, 14 anos atrás, revelava o enfraquecimento do regime castrista, que já não contava com a ajuda econômica da União Soviética e tentava mitigar seu isolamento internacional com uma visita de prestígio.
Bento 16 não teria como produzir efeito semelhante, nem seria de seu interesse. Enquanto o antecessor era um cruzado anticomunista com papel relevante na política internacional, o ex-cardeal Ratzinger, em seu pontificado, tem se voltado para problemas internos à igreja e à ortodoxia da fé.
Foi a Cuba, assim, para cuidar de seu rebanho e consolidar o espaço que a igreja tem ganhado no país -ora sob a tutela de Raúl Castro- desde a viagem de João Paulo 2º.
Até o final dos anos 90, os católicos cubanos não podiam sequer comemorar publicamente o Natal. Hoje Cuba conta com relativa liberdade religiosa, e o bispo de Havana é interlocutor importante para negociar mudanças lentas, graduais e seguras dentro do regime.
O pragmático Raúl Castro comanda reformas "chinesas" em seu país, com estímulos à atividade econômica privada e quase nenhum espaço para abertura política. É de sua conveniência manter abertos canais com uma instituição milenar, que não parece apressada em sua inegável defesa das liberdades individuais na ilha.
Não surpreende, portanto, que Bento 16 tenha sido cuidadoso ao se referir aos prisioneiros do regime, evitando chamá-los pelo nome: presos políticos. Em seus discursos, porém, não deixou de fazer elaborada defesa intelectual da liberdade, em todas as suas formas.
Ao longo da semana, a ditadura cubana permitiu e encorajou manifestações públicas de fé. No entanto, antes da visita papal, reforçou medidas que são praxe há mais de 50 anos para evitar protestos políticos: opositores e dissidentes foram encarcerados.
Parece ainda distante o dia em que Cuba, como Bento 16 disse desejar em seu discurso de despedida, venha a ser "a casa de todos e para todos os cubanos, onde convivam a justiça e a liberdade".

quinta-feira, 29 de março de 2012

DOIS ARTISTAS

FOLHA DE S. PAULO
29/3/2012

Mesmo num país que se congratula pelo inabalável bom humor da população, não há como evitar o lugar-comum da "perda insubstituível" para comentar o desaparecimento, em curto intervalo de tempo, de dois de seus maiores artistas do humor, Chico Anysio e Millôr Fernandes.
Na aproximação desses nomes, o termo "humorista" evidencia toda a variedade de suas acepções.
O talento cênico de Chico Anysio o transformou num grande criador de personagens, capaz de fixar para a imensa maioria dos brasileiros as variedades de seus traços regionais, as mudanças de seus hábitos cotidianos e as fraquezas, nem tão mutáveis, de sua vida política.
O talento de Millôr Fernandes encaminhou-se para formas bem diferentes de expressão. Foi nas artes visuais, área em que demonstrou impressionante versatilidade, e na palavra escrita, no epigrama, na fábula, na poesia e na tradução, que Millôr soube transcender, rumo a altos níveis de estética e erudição literária, o âmbito do puro entretenimento, em que foi, não obstante, um mestre.
Assim como Chico Anysio passou, com sucesso incontestável, do rádio para a televisão, Millôr transitou, já em idade avançada, da página impressa para a tela da internet. A disposição para renovar-se, que ambos possuíram, não conflitou com a capacidade que tiveram, ao longo de décadas, para manter uma continuidade de estilo sem a qual não poderiam ter atingido o estatuto de clássicos.
Não importa muito, no fim das contas, o caráter "erudito" ou "popular" que a obra de Millôr Fernandes ou de Chico Anysio ostentou em primeiro plano; são formas diferentes que convergiram, no panorama da cultura brasileira, para a cristalização de um tipo de humor sempre crítico (e mais, autocrítico), malicioso, mas não vulgar, e até mesmo terno, sem abandonar a acidez.
São características de que o Brasil pode, com certeza, orgulhar-se. No cenário contemporâneo, marcado mais pela exasperação do que pela superioridade da ironia, não tem sido raro que a acidez se torne quase uma arma de marketing, sacrificando a graça em favor do fácil e do chocante.
Ingredientes desse tipo sempre fizeram parte do humor em qualquer parte do mundo, e um senso de exasperação, mesmo que não sublimado, sem dúvida convém aos tempos atuais. Mas a arte -como a exerceram, cada qual a seu modo, Chico Anysio e Millôr Fernandes- faz sempre muita falta.

PAPA REFORÇA MISSÃO DA IGREJA EM CUBA

O GLOBO
29/3/2012

O Papa Bento XVI iniciou sua viagem a Cuba com uma declaração até certo ponto surpreendente. Ainda no avião, rumo ao México, criticou sistemas políticos baseados no marxismo, afirmando que "a ideologia, como foi concebida, não corresponde mais à realidade". Em solo cubano, moderou o discurso, mas deu seu recado ao exortar os cubanos a construir uma sociedade mais aberta, baseada na verdade, na justiça e na reconciliação. Em velada referência ao marxismo, declarou que a "busca da verdade implica o exercício da liberdade autêntica" e que "alguns interpretam mal essa busca, levando-os à irracionalidade e ao fanatismo, e a fechar-se sobre suas verdades, tentando impô-las aos outros". Coube ao vice-presidente do Conselho de Ministros, Marino Murillo, responder a Bento XVI: ele destacou que as reformas econômicas não seriam acompanhadas de reformas políticas.
Mas uma coisa é a retórica da ditadura e outra, a realidade. A viagem papal é útil ao governo de Havana, pois chama a atenção para um país que vive um drama, sem perspectivas e com a economia estagnada. Raúl permitiu que os cubanos comprem e vendam imóveis e veículos, e abram pequenos negócios para dar chance aos milhares de funcionários públicos que serão cortados, pois o Estado não tem mais como mantê-los. E não há dinheiro para investir em infraestrutura e manter as conquistas em termos de saúde e educação.
João Paulo II visitou Cuba em 1998. São momentos diversos, estilos diferentes, outros líderes - Raúl foi o anfitrião de Bento XVI, um Pontífice mais discreto que o inspirador e carismático antecessor. Mas o atual chefe do catolicismo cumpriu a missão de consolidar a Igreja como a maior organização social em Cuba depois do governo e como interlocutora capaz de ter papel crucial nas transformações que já se iniciaram.
Sua mensagem de fé e liberdade poderá servir de amortecedor no caso de uma transição traumática ou colapso do regime. O Papa reconheceu os avanços desde a visita de João Paulo II e exortou o governo a seguir em frente com as reformas. E pediu mais liberdade para a Igreja Católica, incluindo o direito de ensinar religião nas escolas e dirigir universidades.
Um dos assuntos mais delicados é o aspecto policial do regime, que persegue e prende quem faz oposição. Centenas de pessoas foram presas às vésperas da chegada e durante a estada do Pontífice, inclusive integrantes do grupo Damas de Branco. Críticos da ditadura castrista foram mantidos longe dos locais onde o Papa rezou missas públicas. Segundo o Vaticano, o Papa não esteve com dissidentes, mas recebeu suas mensagens.
A viagem do líder da Igreja renova a esperança de que a vida dos cubanos possa mudar para melhor. É um simbólico passo à frente, mas precisa ser seguida de atos concretos. Do lado cubano, de distensão, abertura e respeito aos direitos humanos, que levem ao fim da perseguição política e das prisões arbitrárias. Do lado da Igreja, de empenho em seu renovado papel numa futura transição política que se afigura complicada. É necessário também que os EUA reconheçam o início das reformas em Cuba e negociem o fim do anacrônico embargo econômico, que acaba de completar 50 anos.

O ALERTA POR TRÁS DO CASO DEMÓSTENES

O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) foi, durante muito tempo, uma espécie de homem acima de qualquer suspeita. Líder do partido na Casa, crítico vigoroso de desvios éticos, vocalizou a maioria da opinião pública quando, sem medir palavras, investiu contra o esquema peemedebista que controla o Senado sem preocupação com os manuais de boas condutas. Ou ao pedir a expulsão dos protagonistas do escândalo brasiliense do "mensalão do DEM", à frente dele o ainda governador José Roberto Arruda.
Por isso, talvez não tenha havido, nas últimas legislaturas, surpresa maior que a descoberta do relacionamento nada ético entre o senador e o bicheiro Carlinhos Cachoeira, também de Goiás. O lado obscuro do destemido defensor de boas causas começou a ser iluminado a partir da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, deflagrada contra a indústria dos caça-níqueis, atividade ilegal em que o velho jogo do bicho firmou alianças com máfias internacionais e fez um up-grade em dinheiro, poder e violência.
À descoberta que Cachoeira dera ao senador, como presentes de casamento, um fogão e geladeira importados, o político respondeu, de maneira singela, que não poderia perguntar o preço dos regalos ao amigo. Mas as evidências de que o relacionamento entre Demóstenes e Carlinhos ultrapassava os limites de uma exótica amizade se acumularam. Não é comum um bicheiro dar a um político um tipo de telefone supostamente vacinado contra grampos para, por meio dele, ficarem em contato constante. O equipamento não funcionou ou usaram outros aparelhos para colocar os assuntos em dia, pois mais de 300 ligações entre os dois teriam sido gravadas pela PF. O conteúdo das conversas implicaria Demóstenes nos negócios escusos de Cachoeira.
A primeira reação dos senadores foi de pavloviano corporativismo: situação e oposição subiram à tribuna para prestar solidariedade ao ultrajado colega, um jogo conhecido em cujo final costumam-se engavetar as piores investidas contra o decoro. As denúncias, porém, foram se acumulando, Demóstenes perdeu a liderança do DEM e até mesmo a Procuradoria-Geral da República, desatenta ao caso, despertou para o escândalo, e, na terça, o procurador Roberto Gurgel, afinal, despachou pedido ao Supremo para ser aberto inquérito sobre o senador. Gurgel já estava há algum tempo com o processo, mas alegou esperar mais informações da operação policial.
A proximidade entre o bicheiro e Demóstenes realça a grave questão da infiltração do crime organizado nas instituições. E não se pode esquecer que, além do senador, dois deputados também faziam parte - ou fazem - deste círculo íntimo de Carlinhos: Carlos Alberto Leréia (PSDB) e Sandes Junior (PP), ambos de Goiás. O próprio bicheiro é conhecido por antigas relações subterrâneas com o mundo político, expostas no vídeo gravado em 2002 em que Waldomiro Diniz, então na Loterj, e futuro assessor de José Dirceu na Casa Civil no governo Lula, o achacava. Cabe lembrar que o escândalo causado pelo vídeo, revelado pela revista "Época" em 2004, abortou uma operação em curso no governo e Congresso para a indesejada legalização do jogo.
Se Cachoeira atua no Congresso, no Rio há milícias com representação nas Casas legislativas, e um juiz sob suspeição de proteger esses grupos. Demóstenes não pode ser visto como caso isolado.

TRÂNSITO. PROVA DA EMBRIAGUEZ. STJ FAZ RESPEITAR ESTADO DE DIREITO.

Estado de direito: de acordo com o Estado de Direito vigente ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. Ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Isso está contemplado no art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos e admitido pelo art. 5º, § 2º, da CF. Esse é o Estado de Direito vigente.
O STJ (Superior Tribunal de Justiça) acertadamente decidiu (28.03.12) que somente o bafômetro e o exame de sangue podem atestar a embriaguez do motorista e excluiu provas testemunhais ou exame médico para esse fim. Tudo isso decorre da forma típica adotada pelo legislador, equivocadamente. O tipo penal (art. 306 do CTB) exige 6 decigramas de álcool para que o condutor seja considerado embriagado. Exigência típica indiscutível. A redação da lei é equivocada porque esse número não deveria aparecer nela. Já que lá está, impossível ignorá-lo.
A Lei Seca ficou esvaziada, uma vez que o motorista não é obrigado a produzir provas contra si mesmo e pode recusar os exames exigidos para a comprovação da taxa de alcoolemia exigida pela lei. Assim, a comprovação de embriaguez pode ficar inviabilizada, quando o motorista se recusa a fazer o exame de sangue ou o bafômetro. Assim é o Estado de Direito.

Foram cinco votos a favor do Estado de Direito e quatro a favor do Estado de Exceção.
O desembargador convocado Adilson Macabu conduziu o voto vencedor. “O Poder Executivo editou decreto e, para os fins criminais, há apenas o bafômetro e exame de sangue. Não se admite critérios subjetivos”, disse. “Mais de 150 milhões de pessoas não podem ser simplesmente processados por causa de uma mera suspeita”, completou.
No mesmo sentido, o ministro Og Fernandes foi incisivo. “Não é crime dirigir sob efeito de álcool. É crime dirigir sob efeito de mais de um mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue”. É extremamente tormentoso deparar-se com essa falha legislativa, mas o juiz está sujeito à lei”, afirmou.
A lei determina que é crime dirigir com uma quantidade de álcool acima de seis decigramas por litro de sangue, o que só pode ser atestado por exame de sangue ou bafômetro, segundo decreto do governo federal. Por isso, o STJ entendeu que uma testemunha não pode atestar, cientificamente, a quantidade de álcool no sangue.
Ficou vencido o relator, ministro Marco Aurélio Belizze, que disse que a lei não pode ser interpretada em sentido “puramente gramatical”. Para ele, uma testemunha ou exame médico é suficiente para os casos “evidentes”, quando os sintomas demonstram que a quantidade de álcool está acima da permitida.
“Não pode ser tolerado que o infrator, com garrafa de bebida alcoólica no carro, bafo e cambaleando, não possa ser preso porque recusou o bafômetro”, disse. Esse fato não pode mesmo ser tolerado e é por isso que existe o art. 165 do CTB, que prevê sanções duras contra esse embriagado. Não se pode confundir o direito penal (art. 306) com o direito administrativo (art. 165). Ambos devem incidir, cada um em sua situação. Com mais de 41 mil mortes por ano no trânsito, ninguém está mesmo de acordo que o motorista beba e depois venha a dirigir. Há duas formas de se punir esse motorista: a administrativa e a penal. Esta última tem mais exigências, sobretudo probatórias. Sem a comprovação inequívoca da quantidade de álcool por litro de sangue ninguém pode ser condenado pelo crime. Mas pode ser condenado pela infração administrativa, que, se aplicada corretamente, produz grande efeito preventivo.

Jurista e cientista criminal. Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

CADEIA DE RESULTADOS

FOLHA DE S. PAULO
28/3/2012

Encarceramento aumenta no Brasil, sem garantia, porém, de que o país avance no que interessa -combater e punir os crimes mais graves

A taxa de encarceramento quase triplicou no Brasil. Há 17 anos, eram 95 presos para cada grupo de 100 mil habitantes. Pelo dado mais recente (junho do ano passado), já são 269 por 100 mil.
Entre os dez países mais populosos do mundo, é a terceira maior taxa; o recorde pertence aos Estados Unidos, com 730 por 100 mil.
Por trás daquela informação, à primeira vista sugestiva de maior eficácia policial e judicial, ocultam-se várias deficiências.
A constatação mais alarmante é a falta de vagas nas prisões: a população carcerária é de 513.802 pessoas (42% sem julgamento), mas só há lugar para 304.702 presos. Para piorar, tal disparidade vem aumentando com o passar dos anos.
Consequência lógica dessa situação, a superlotação de presídios é a face mais visível do problema. Um quadro comparável às "masmorras medievais" de que falava um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Recentemente, a Suprema Corte dos EUA determinou que o Estado da Califórnia reduzisse seu deficit prisional. Na impossibilidade de construir novas unidades carcerárias, presos menos perigosos deveriam ser postos em liberdade. O argumento central é que prisões superlotadas violam a proibição de penas cruéis e desumanas.
A Constituição brasileira contém o mesmo tipo de vedação, mas não há dúvida de que ela é com frequência desrespeitada, dadas as condições carcerárias por aqui. Ninguém chegaria ao ponto de propor, contudo, esvaziar presídios a qualquer custo.
A primeira medida é providenciar para que só permaneçam nas prisões os que nelas precisam estar. O mutirão carcerário do CNJ, iniciado em 2008, entra agora em sua última fase. Já libertou 36 mil pessoas que não deveriam estar presas e garantiu a 76 mil o direito a benefícios como redução da pena.
Não é por meio de medidas excepcionais, no entanto, que o país resolverá o desafio. A solução deve passar pela reorganização do sistema penal para punir com maior eficácia os crimes mais graves, em vez de apinhar cadeias com autores de delitos menores.
A reforma do Código Penal, nesse sentido, é crucial -tanto para ampliar a aplicação de sanções alternativas quanto para recompor a proporcionalidade entre penas e crimes.
Prisões superlotadas funcionam como verdadeiras usinas do crime. São, portanto, o reverso do que se espera delas: instituições que afastam da sociedade aqueles indivíduos que cometem crimes violentos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Ruy Barbosa ou Rui Barbosa?


1) Numa elevada discussão entre leitores, questiona-se como grafar o nome do nosso amado jurista baiano: Ruy Barbosa ou Rui Barbosa. Um levanta a divergência entre o "site" do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e o da Fundação Casa de Rui Barbosa. Outro tenta solucionar com o abono da certidão de nascimento.

2) Fixe-se, nessa matéria, um importante princípio: os nomes próprios sujeitam-se às regras normais de ortografia e de acentuação gráfica, assim como qualquer outra palavra da língua. Por isso se deve escrever Antônio, Luís, Mateus, Rui, e não Antonio, Luiz, Matheus ou Ruy.

3) Confirma-se na lei tal afirmação: o item XI, subitem 39, do Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa – em instruções aprovadas unanimemente pela Academia Brasileira de Letras na sessão de 12.8.43 – assim determina: "Os nomes próprios personativos, locativos e de qualquer natureza, sendo portugueses ou aportuguesados, serão sujeitos às mesmas regras estabelecidas para os nomes comuns".

4) Especificando, na consonância com o item I, subitens 1 e 2, das mesmas instruções, o y só pode ser usado em casos especiais:
I) "em abreviaturas e como símbolo de alguns termos técnicos e científicos" (cf. item II, subitem 9), como y (de ítrio) ou yd (de jarda);

II) "nos derivados de nomes próprios estrangeiros" (cf. item II, subitem 10), como em byroniano, mayardiana ou taylorista.
5) Observe-se que a Academia Brasileira de Letras detém delegação legal para definir a extensão de nosso léxico, as regras de como escrever os vocábulos, assim como a acentuação e a pronúncia, de modo que sua palavra não significa mera posição ou opinião, mas é a própria lei, que deve ser seguida, de modo que qualquer outra discussão há de situar-se apenas no campo da polêmica científica e da discussão doutrinária.

6) É oportuno acrescentar proveitosa lição de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante para a situação ora analisada: "A grafia dos nomes de todos os que se tornam publicamente conhecidos aparece corrigida em publicações feitas após a morte dessas pessoas".1

7) De Arnaldo Niskier também é lição nesse sentido: "Passando desta para a melhor, a norma é escrever seus nomes de acordo com as regras ortográficas", razão pela qual "um Antonio Luiz só o será em vida: depois da morte passará a ser, portuguesmente, Antônio Luís".2

8) Em resumo, a situação do caso concreto da consulta deve ser assim solucionada: em vida, o jurista baiano chamava-se Ruy Barbosa de Oliveira. Após sua morte, deve-se grafar Rui Barbosa de Oliveira.
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1Cf. CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Scipione, 1999, p. 42.
2Cf. NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992, p. 45.