quinta-feira, 24 de abril de 2014

Do direito de greve para operários da segurança

Data: 21/04/2014
10:20:29
Disse o filósofo e poeta Cláudio Dortas, quase meio século atrás: “Sou contra a lei porque a lei é filha do erro”. A questão está aí, na origem distorcida da polícia, que também nasce de uma motivação negativa.
As corporações foram instituídas como solução “natural” ante a necessidade de proteção do patrimônio e da ordem pública, as quais sem elas seriam alvo constante da turba esfomeada e excluída desde longínquas eras.
Eram formadas pelos mais fortes, mais corajosos e, naturalmente, mais obedientes, esta última condição conseguida à base de bom soldo e vantagens outras que conduziam seus membros a posição social acima da massa ignara.
Eram gendarmes obcecados pelo cumprimento do dever, e assim ocorreu também numa “capitania” próspera como a da Bahia, em que batalhões de homens armados foram reunidos sob os conceitos da disciplina e da hierarquia.
A Polícia Militar é praticamente bicentenária, mas somente nas últimas décadas de existência movimentou-se em direção oposta ao espírito de sua gênese, transformando, em última análise, a sensação de segurança da comunidade em terror contínuo.
Não é algo que acontece de repente ou sem razão. É, para usar um jargão incontestável, a modernidade do mundo, em que até o Brasil experimenta sua mais longa vivência democrática, embora a primeira greve da PM baiana tenha sido em 1981, ainda no regime militar.
Esse processo, num tempo em que não há mais segredos sobre a informação elementar – “todo mundo” sabe de “tudo” –, contribuiu para enfraquecer o vínculo da instituição com o sistema de poder, que no seu âmago não representa mais.
Os policiais são hoje operários da segurança, sentem-se cidadãos autônomos, que se associam sindicalmente para pugnar por direitos de indivíduos, sem deixar de levar em conta que as falhas no seu trabalho, muitas vezes, não tenham como punição a advertência, a suspensão, mas a morte, demissão irrevogável.
Sim, é contra a lei o movimento paredista em organizações militares, e por isso seus insufladores e participantes correm o risco de repressão pelas Forças Armadas e enquadramento em legislação das mais duras. Mas estamos diante de uma situação de fato, com a qual teremos de aprender a conviver.

Site Por Escrito.

Distância da Seleção ajuda a rejeitar Copa

Data: 23/04/2014
22:28:21
Um dos fatores que mais contribuem para a tendência brasileira, constatada em pesquisas, a rejeitar a Copa do Mundo, ao lado da evidente insatisfação popular com a corrupção e os serviços públicos, é a crescente falta de identidade com a Seleção Brasileira.
Nos tempos em que vigia o conceito nelsonrodrigueano de “pátria de chuteiras”, seria uma heresia menosprezar a competição, ainda mais no próprio país, quando todos poderiam exercitar ao vivo os briosos sentimentos nacionais.
Houve uma tentativa de misturar as coisas durante o regime militar, estimulando-se a torcida contrária em certos segmentos políticos para confrontar o uso descaradamente político da Copa de 70 pela ditadura.
Não funcionou, primeiro, porque não ocorreu, em razão da própria censura e da repressão, um movimento orgânico nesse sentido. Depois, era forte o vínculo entre o orgulhoso torcedor e o “escrete canarinho”, redentor de todos os medos e vergonhas.
A história começou longe, ditada pela proximidade física e espiritual entre a população e os jogadores, todos atuando aqui mesmo, nos clubes do coração de cada um, relação que começou a mudar na década de 80, quando teve início a exportação em massa de nossos craques.
Zizinho, um deus vivo na época praticamente amadora do futebol brasileiro, saía do Maracanã após jogar partidas pela Copa de 50 e ia pegar, com sua sacola na mão, como um passageiro qualquer, a barca que o levaria a Niterói, onde morava.
Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo e Júnior, os quase heróis da Copa de 82, comandaram o início do êxodo para a Itália e outros países. Com eles ainda havia alguma ligação, mas, a partir daí, a relação só fez deteriorar-se.
O quadro atual é de completo distanciamento entre a “base” e a “cúpula”. A Seleção tem jogadores que jamais se projetaram no Brasil, havendo muitos que migraram ainda adolescentes. A maioria vive hoje nos ares e padrões europeus, possivelmente para sempre.
A imprensa esportiva faz seu papel, estimula as festas com bandeirolas em bairros populares, porque seus agentes correm o mundo de avião, fazem parte da “cúpula” e pensam que ainda vivem a nostálgica “cadeia verde e amarela, de norte a sul do país”. Mas a verdade é que o encanto está definitivamente quebrado.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

MAL RESOLVIDO



Há muito, muito tempo, num país longínquo, dois monges puseram-se destemidamente a caminho de um mosteiro distante. Estava um belo dia de vento e chuva. Iam a pé, avançando lentamente por uma estrada de terra batida muito enlameada e cheia de poças de água.
A certa altura, viram uma mulher que queria atravessar a estrada mas que hesitava, pois percebia que ia sujar o seu bonito vestido comprido na lama. Um dos monges, o mais velho dos dois (tinha quarenta e tal anos, enquanto o outro andava pelos vinte e poucos), aproximou-se da mulher e, depois de a saudar com uma curta vénia e lhe pedir licença, ergueu-a no ar com gestos cuidadosos e respeitosos (evitou que o seu corpo tocasse no dela), e colocou-a do outro lado da estrada. Fez outra vénia, um pouco mais rasgada que a primeira, e assim que ela terminou as palavras de agradecimento retomou a caminhada, seguido de perto pelo outro monge.
Até ao momento em que encontraram a mulher, o monge mais novo tinha-se mostrado alegre e espirituoso, falando pelos cotovelos, mas agora ia calado e respondia com secos monossílabos às questões do companheiro. O seu ar era tão carrancudo que o silêncio se tornou mais sombrio e pesado que o céu, apesar deste ameaçar com uma tempestade. Horas depois, já mergulhados na escuridão da noite e quando o cansaço ameaçava transformar-se em dor, chegaram ao mosteiro. Rezaram e depois lavaram-se e comeram. O monge mais novo manteve sempre o seu silêncio irritado e ostensivo. Quando o seu companheiro já se preparava, com a tigela e a colher na mão, para se levantar é que, sem fitá-lo com o olhar pregado no chão, finalmente falou:
- Fizeste mal em pegar naquela mulher ao colo. Porventura esqueceste que fizemos um voto de castidade?
O monge mais velho sentou outra vez o corpo meio erguido, pousou devagar a tigela e a colher na madeira velha da mesa e fitou o outro monge com um imperceptível sorriso nos lábios. Observou-lhe primeiro as mãos, morenas e grandes mas sem marcas de trabalho, e depois olhou para dentro dos seus olhos, que logo fugiram para o lado e depois para o chão. Se os monges daquele distante mosteiro não se tivessem já recolhido teriam encontrado doçura e não dureza ou amargura na voz do monge mais velho:
- Eu deixei a mulher na estrada, há horas atrás. Tu ainda a trazes contigo.
Fotografia: Keystone, 1960. Encontrada no facebook do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.
História: Lida não sei onde e recontada de memória.