LÊ TRAZ LIBERDADE
Gerivaldo Alves Neiva*
Vi esta frase em um adesivo de uma faculdade de
letras. A letra “z” era invertida, parecendo um “s” e formava um
bonito trocadilho: lê traz liberdade ou letras liberdade.
Esse adesivo me fez lembrar de uma situação que
vivi há mais de 20 anos. Na época, eu era advogado de “posseiros” e
pequenos proprietários de terra no interior da Bahia. Era o auge da expansão da
fronteira agrícola na região oeste e também de muitos conflitos fundiários. Ao
contrário de hoje, a luta era para ficar na terra, era defender a terra!
Naquela época, uma grande empresa rural, mais de
fachada do que de fato, com recursos da Sudene, estava “grilando” terras
no oeste da Bahia. Era tempo da fartura de recursos para o Proálcool e para o
bolso de falsos investidores que recebiam o dinheiro público e sumiam no
mundo...
Apesar de ser advogado recém-formado, conhecia bem
esse problema no interior da Bahia, pois havia feito estágio na Federação dos
Trabalhadores na Agricultura – FETAG. Aliás, fui um estagiário privilegiado.
Aprendi a advogar com Lúcia Lyra, Paulo Torres e Edson Souza. São figuras quase
mitológicas para o mundo jurídico-alternativo-popular na Bahia! São quase
entidades, orixás baianos!
Pois bem, certo dia atendi no escritório um “posseiro”
que estava sendo ameaçado por um preposto dessa temida e poderosa empresa.
Conversamos sobre o caso, tomei nota das informações para a ação possessória e
lhe apresentei a procuração para assinar. Ele recebeu a caneta que lhe ofereci,
olhou o papel, olhou em meus olhos, olhou novamente o papel e me devolveu a
caneta.
Era um agricultor típico. Rosto queimado do sol
escaldante do oeste baiano e repleto de marcas. Mãos grossas e unhas sem corte
e algumas com pequenas marcas de terra. Trazia um chapéu de couro apertado
entre as mãos e calçava um bota também de couro. Os olhos ligeiros corriam meu
escritório e misturavam medo e esperança.
Seu ato de me devolver a caneta ainda seria
explicado, mas pensei em vários motivos. O primeiro e o que eu mais temia é que
ele não estava acreditando no “taco” de um advogado com apenas 21 anos
de idade para enfrentar aquela dureza. Pensei também que ele não acreditava na
saída legal e tentaria resolver a seu modo. Pensei em outras possibilidades,
mas não pensei jamais na contundente resposta que ele me daria com a voz
embargada e forte ao mesmo tempo:
- Doutor, o senhor me desculpe, mas
eu sou analfabetizado.
Fiz uma primeira confusão entre alfabetizado e
analfabetizado, mas compreendi em seguida que ele não sabia assinar seu nome na
procuração. Havia naquela expressão, no entanto, muito mais do que o
significado de ser analfabeto. Não era mais uma simples condição de não saber
assinar o nome, mas de ter se tornado analfabeto, aliás, de ter sido a
conseqüência de um processo de abandono pelo poder público, de ter sido
esquecido na zona rural, de não ter sido contado como gente...
Passado o constrangimento, tentei lhe explicar que
seria necessário fazer uma procuração pública no cartório, que não se
incomodasse com a situação de não saber assinar o nome e também lhe contei
aquela velha piada do doutor que pede ao pescador para lhe atravessar o rio de
canoa. No meio do rio, o doutor pergunta se o pescador sabe ler e ele responde
que não. O doutor, então, responde que o pescador perdeu metade da vida.
Percebendo o perigo iminente, o pescador pergunta ao doutor se ele sabe nadar e
a resposta também é negativa. O pescador, então, observa que o doutor vai
perder a vida inteira, pois a canoa vai afundar.
Ele riu meio sem graça, mas se animou um pouco e
concordou que os saberes são diferentes, observando que um advogado sabe sobre
a Justiça e um homem da roça sabe sobre a natureza, que é o seu mundo.
Pensou um pouco e começou a falar com sabedoria: meu
doutor, eu sei se o ano vai ser bom de chuva e sei até o mês que vai chover;
conheço o canto de todos os pássaros e sei o que eles conversam; conheço a
pisada da onça, do caititu, da raposa e sei onde mora cada um desses
bichos; sei todas as horas do dia, desde a madrugada, de acordo com o cantar do
galo ou de outros avisos da natureza; conheço todos os paus, folhas e raízes
boas prá remédio; na natureza, doutor, até as formigas têm o que dizer... Meu
doutor advogado, de natureza eu também sou doutor!
Se tivesse deixado, ele teria conversado horas
sobre seus saberes, mas tinha outros clientes para atender ainda naquela
calorenta manhã. Antes de sair, ele suspirou fundo e me disse: olhe doutor,
esse todo meu saber só me serve na roça. Aqui na cidade, como não sei ler, ando
tateando como um cego. É assim mesmo, quem não sabe ler é como um cego.
Mais de 20 anos se passaram...
Pois bem, hoje sou Juiz de Direito e não preciso
mais de procuração do cliente. Hoje tenho jurisdicionados. (Não gosto desse
nome, pois transmite uma idéia de reinado e súditos.) O certo, no entanto, é
que ou Juiz de Direito e continuo tentando ler e ver o mundo em que vivo.
E vejo, por exemplo, crianças concluindo o primeiro
ciclo do ensino fundamental sem saber ler ou escrever, sendo aprovados
automaticamente. Algumas não podem ser classificadas sequer como “analfabetos
funcionais.” Ficam esperando apenas a hora da merenda, mas depois se
cansam da mesmice da escola, entram para a estatística de evasão escolar e vão
para as ruas.
Hoje, depois de 20 anos, interrogo jovens de 20
anos acusados de pequenos furtos para comprar pedras de “crack” e quando
peço sua assinatura no termo do interrogatório, vejo a caneta sendo devolvida e
trocada pela esponja do carimbo.
Por coincidência, estamos no vigésimo aniversário
da Constituição de 1988, onde a educação é direito de todos e dever do Estado,
mas o Estado Brasileiro continua“analfabetizando” suas crianças e
conduzindo seus jovens ao nada, ao descrédito total, à desesperança, cegos,
errantes pelo mundo!
Alguns constitucionalistas, no entanto, dizem que
nossa Carta Magna é maravilhosa, pois já nos garantiu o mais longo período de
estabilidade política.
A cegueira deles é outra...
* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
Conceição do Coité, 23 de novembro de 2008, ano XX da Constituição
Federal de 1988.
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