quarta-feira, 2 de maio de 2012

Para comemorar a decisão do STF sobre as cotas: lê traz liberdade!

LÊ TRAZ LIBERDADE
 
Gerivaldo Alves Neiva*
Vi esta frase em um adesivo de uma faculdade de letras. A letra “z” era invertida, parecendo um “s” e formava um bonito trocadilho: lê traz liberdade ou letras liberdade.
Esse adesivo me fez lembrar de uma situação que vivi há mais de 20 anos. Na época, eu era advogado de “posseiros” e pequenos proprietários de terra no interior da Bahia. Era o auge da expansão da fronteira agrícola na região oeste e também de muitos conflitos fundiários. Ao contrário de hoje, a luta era para ficar na terra, era defender a terra!
Naquela época, uma grande empresa rural, mais de fachada do que de fato, com recursos da Sudene, estava “grilando” terras no oeste da Bahia. Era tempo da fartura de recursos para o Proálcool e para o bolso de falsos investidores que recebiam o dinheiro público e sumiam no mundo...
Apesar de ser advogado recém-formado, conhecia bem esse problema no interior da Bahia, pois havia feito estágio na Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAG. Aliás, fui um estagiário privilegiado. Aprendi a advogar com Lúcia Lyra, Paulo Torres e Edson Souza. São figuras quase mitológicas para o mundo jurídico-alternativo-popular na Bahia! São quase entidades, orixás baianos!
Pois bem, certo dia atendi no escritório um “posseiro” que estava sendo ameaçado por um preposto dessa temida e poderosa empresa. Conversamos sobre o caso, tomei nota das informações para a ação possessória e lhe apresentei a procuração para assinar. Ele recebeu a caneta que lhe ofereci, olhou o papel, olhou em meus olhos, olhou novamente o papel e me devolveu a caneta.
Era um agricultor típico. Rosto queimado do sol escaldante do oeste baiano e repleto de marcas. Mãos grossas e unhas sem corte e algumas com pequenas marcas de terra. Trazia um chapéu de couro apertado entre as mãos e calçava um bota também de couro. Os olhos ligeiros corriam meu escritório e misturavam medo e esperança.
Seu ato de me devolver a caneta ainda seria explicado, mas pensei em vários motivos. O primeiro e o que eu mais temia é que ele não estava acreditando no “taco” de um advogado com apenas 21 anos de idade para enfrentar aquela dureza. Pensei também que ele não acreditava na saída legal e tentaria resolver a seu modo. Pensei em outras possibilidades, mas não pensei jamais na contundente resposta que ele me daria com a voz embargada e forte ao mesmo tempo:
- Doutor, o senhor me desculpe, mas eu sou analfabetizado.
Fiz uma primeira confusão entre alfabetizado e analfabetizado, mas compreendi em seguida que ele não sabia assinar seu nome na procuração. Havia naquela expressão, no entanto, muito mais do que o significado de ser analfabeto. Não era mais uma simples condição de não saber assinar o nome, mas de ter se tornado analfabeto, aliás, de ter sido a conseqüência de um processo de abandono pelo poder público, de ter sido esquecido na zona rural, de não ter sido contado como gente...
Passado o constrangimento, tentei lhe explicar que seria necessário fazer uma procuração pública no cartório, que não se incomodasse com a situação de não saber assinar o nome e também lhe contei aquela velha piada do doutor que pede ao pescador para lhe atravessar o rio de canoa. No meio do rio, o doutor pergunta se o pescador sabe ler e ele responde que não. O doutor, então, responde que o pescador perdeu metade da vida. Percebendo o perigo iminente, o pescador pergunta ao doutor se ele sabe nadar e a resposta também é negativa. O pescador, então, observa que o doutor vai perder a vida inteira, pois a canoa vai afundar.
Ele riu meio sem graça, mas se animou um pouco e concordou que os saberes são diferentes, observando que um advogado sabe sobre a Justiça e um homem da roça sabe sobre a natureza, que é o seu mundo.
Pensou um pouco e começou a falar com sabedoria: meu doutor, eu sei se o ano vai ser bom de chuva e sei até o mês que vai chover; conheço o canto de todos os pássaros e sei o que eles conversam; conheço a pisada da onça, do caititu, da raposa e sei onde mora cada um desses bichos; sei todas as horas do dia, desde a madrugada, de acordo com o cantar do galo ou de outros avisos da natureza; conheço todos os paus, folhas e raízes boas prá remédio; na natureza, doutor, até as formigas têm o que dizer... Meu doutor advogado, de natureza eu também sou doutor!
Se tivesse deixado, ele teria conversado horas sobre seus saberes, mas tinha outros clientes para atender ainda naquela calorenta manhã. Antes de sair, ele suspirou fundo e me disse: olhe doutor, esse todo meu saber só me serve na roça. Aqui na cidade, como não sei ler, ando tateando como um cego. É assim mesmo, quem não sabe ler é como um cego.
Mais de 20 anos se passaram...
Pois bem, hoje sou Juiz de Direito e não preciso mais de procuração do cliente. Hoje tenho jurisdicionados. (Não gosto desse nome, pois transmite uma idéia de reinado e súditos.) O certo, no entanto, é que ou Juiz de Direito e continuo tentando ler e ver o mundo em que vivo.
E vejo, por exemplo, crianças concluindo o primeiro ciclo do ensino fundamental sem saber ler ou escrever, sendo aprovados automaticamente. Algumas não podem ser classificadas sequer como “analfabetos funcionais.” Ficam esperando apenas a hora da merenda, mas depois se cansam da mesmice da escola, entram para a estatística de evasão escolar e vão para as ruas.
Hoje, depois de 20 anos, interrogo jovens de 20 anos acusados de pequenos furtos para comprar pedras de “crack” e quando peço sua assinatura no termo do interrogatório, vejo a caneta sendo devolvida e trocada pela esponja do carimbo.
Por coincidência, estamos no vigésimo aniversário da Constituição de 1988, onde a educação é direito de todos e dever do Estado, mas o Estado Brasileiro continua“analfabetizando” suas crianças e conduzindo seus jovens ao nada, ao descrédito total, à desesperança, cegos, errantes pelo mundo!
Alguns constitucionalistas, no entanto, dizem que nossa Carta Magna é maravilhosa, pois já nos garantiu o mais longo período de estabilidade política.
A cegueira deles é outra...
* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
Conceição do Coité, 23 de novembro de 2008, ano XX da Constituição Federal de 1988.

DIA DO TRABALHO OU DIA DO TRABALHADOR?

Murilo Oliveira, Juiz do Trabalho(5ª Região) e Professor da UFBA.
No dia internacional do trabalho, celebram-se as lutas operárias em defesa da redução da jornada de trabalho. Lembrar do primeiro de maio serve para que não se esqueça o ocorrido em 1º de maio de 1886 em Chicago nos Estados Unidos. Nestas manifestações, precisamente durante o confronto com a polícia local, ocorreram mortes quando uma bomba explodiu. Por considerar os organizadores das passeatas os responsáveis pelas mortes, os dirigentes sindicais foram condenados pela Justiça à morte na forca. É esse o grosso resumo dos fatos que explicam historicamente o primeiro de maio (veja a história mais detalhada em http://www.culturabrasil.pro.br/diadotrabalho ), justificando o epíteto de “os mártires de maio”.
A despeito desta história de luta, morte e injustiça de trabalhadores, o primeiro de maio é designado como “dia do trabalho”. Este título oficialesco representa uma sutil prevalência da ação (trabalho), logicamente em detrimento do sujeito que realiza esta ação (trabalhador). No discurso oficial, celebra-se o trabalho humano na sua acepção genérica e não a luta dos trabalhadores que pagaram com sangue a obtenção da jornada de oito horas. Suprime-se o trabalhador (e sua dor), restando o trabalho, na perspectiva positivista mais neutra possível.
Esta questão de nomenclatura não pode ser tida como um problema pequeno. Isto porque algumas mudanças de nomes, como esta, trazem um conteúdo ideológico de esvaziamento do sentido histórico do termo. Falar hoje em dia do trabalho pouco remete a luta pela redução da jornada de trabalho e as demais lutas dos trabalhadores. Comemorar o primeiro de maio tende a significar somente a exaltação de toda a pessoa que trabalha, que pode ser tanto um empregador que administra sua empresa, um trabalhador autônomo, ou um empregado. Assim, consegue-se, com uma pequena mudança de nome, desfocar as lutas dos trabalhadores, consagradas em parte no Direito do Trabalho.
Celebra-se, enfim, neste dia uma série de conquistas do Direito do Trabalho, muitas atendendo parcialmente aos reclames dos trabalhadores. Rememora-se que estas lutas tiveram um preço histórico grande para serem reconhecidas pelo Estado como direitos trabalhistas, tal como foi a morte de mais cento e trinta mulheres grevistas queimadas numa fábrica de Nova York em 1857, data posteriormente reconhecida como dia internacional da mulher. Mais apropriado, então, é referir-se ao dia de hoje como “dia internacional do trabalhador”, em memória dos mártires de Chicago e em respeito à história das lutas dos trabalhadores e trabalhadoras.